Agaciel Maia e José Sarney, afilhado e padrinho político se confraternizam antes de seus esquemas serem revelados. Agora, o silêncio do ex-diretor geral será devidamente valorizado quando a tormenta passar. - Foto:safreire
Agaciel Maia e José Sarney, afilhado e padrinho político se confraternizam antes de seus esquemas serem revelados. Agora, o silêncio do ex-diretor geral será devidamente valorizado quando a tormenta passar.
Foto:safreire

29 de junho de 2009, Bruno Lima Rocha, do Rio Grande outrora altaneiro

A instituição parlamentar no Brasil vive de sua dubiedade e isso já há muito tempo. Quando no hoje longínquo ano de 1984 o Congresso Nacional com maioria da Arena recusa a emenda das Diretas para presidente, em tese ali iniciava o princípio do fim do domínio oligárquico nas duas casas. Ledo engano, porque a cultura política que dialogava com a ditadura e possibilitou invenções de triste memória como os “senadores biônicos”, “reciclou-se” para assumir o poder do Estado brasileiro. As palavras são duras, mas reais. Os que eram apoio para a o regime da caserna tornaram-se a base política do regime “democrático” do rito liberal.

Desse modo, a continuidade foi vista a olhos nus e não assume quem não quer. Aos poucos os componentes do palanque das Diretas foram se “adaptando” e já na Constituinte uma parte deles participava avidamente do Centrão. Este bloco, dotado de eufemismo o qual já abordei em artigo anterior, era a direita programática na legislatura que conseguiu a proeza de escrever a Carta Magna e negociar um mandato tampão para José Sarney, sempre em troca de prebendas, tais como as sempre presentes concessões para rádio e TV.

Não há que se demonizar a José Sarney e sua trupe, uma vez que a composição da Aliança Democrática já contava com a UDN, travestida de Arena e depois de PFL. O MDB, transformado em PMDB, dá vazão às demandas regionais já nas eleições estaduais de 1982. Ganhou em vários estados e depois arrasou no pleito do Plano Cruzado, em 1986. Um dia depois da esmagadora vitória eleitoral nos estados e no Congresso, seu governo, com Sarney à frente, decretava o fim do Plano Cruzado I e o Cruzado II assistiu sua “inauguração” com mais de 30 mil pessoas na Esplanada dos Ministérios simplesmente quebrando tudo o que viam pela frente. Mesmo os mais humildes não toleram que subestimem sua inteligência. Parece que a lição não foi aprendida.

No Senado, se vê a continuidade da contaminação institucional

Houve quem defendesse a renovação parlamentar como forma de injetar sangue novo nas casas e assim romper com velhos vícios. Ledo engano. Primeiro porque os vícios não são “vícios”, mas algo constitutivo do uso privado da máquina estatal detentora de mandato público. Segundo, porque assim como no presídio, quando o réu primário entra leigo e sai professor na escola do crime violento embora de pouca monta, nas casas parlamentares, o ritmo é ditado pelos líderes das bancadas por legenda, estado ou grupo de interesse. Se alguém pensa que exagero, basta conferir o acionar político da senadora Kátia Abreu (DEM-TO) e de seu correligionário de Goiás, o sempre atuante latifundiário e deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO).

Ao invés de mudar o comportamento interno, o que se viu foi a clássica renovação para perpetuação. Mais uma vez exercito a memória recente, recordando que o Congresso onde o então presidente Fernando Collor de Mello, hoje senador da base de apoio ao governo (PTB-AL), tinha maioria e rolo compressor foi o mesmo que o ajudou a derrubar. Logo após a queda do maior factóide político do Brasil, o Congresso vivera meses de agonia com o escândalo dos Anões do Orçamento. Na ocasião se vira modus operandi semelhante ao dos últimos 15 anos de gestão de Sarney, Calheiros e Cia. À frente da câmara alta da república. Um servidor de carreira levou para a lona alguns políticos conhecidos e outros de perfil político irrelevante, inversamente proporcional ao tamanho de suas fortunas pessoais sem origem e nem procedência. Quem se recorda dos finados Ricardo Fiúza (PP de Pernambuco, ex-ministro de Collor) e de João Alves acertou. Mas, as teias de relações escusas vão mais além. A CPI dos Anões começara logo após a saída de Collor, ganhando pouco fôlego em função do acionar da negativa de Itamar Franco (vice de Collor que assumira em outubro de 1992). Como se nota, a continuidade de ações corriqueiras, como as levadas adiante por José Carlos dos Alves dos Santos – o funcionário público que operava o esquema dos anões, dentre eles os 14 cassados – não são nada recentes.

A auditoria é um começo, mas o raciocínio lógico deve ser de outra ordem

Se dia a dia fatos novos vêm à tona e sendo estas mesmas verdades factuais apenas uma parte do todo, nos deparamos com algo que tem uma grandeza inequívoca. Quando aplicado o princípio do serviço público de Publicidade da própria máquina e de seu acionar, nos damos conta de que o que há no Senado não é “desvio”, mas forma distinta. Não quero dizer que concordo com os absurdos feitos há 15 anos, a noção é outra. O que afirmo sem nenhuma hesitação é duro de admitir. Se o faço em sala de aula tenho de ter o brio de escrever e difundir. Ou seja, o que há no Senado não é a crise pela conduta fisiológica dos seus membros. O que há é a simples difusão desta mesma conduta. Ou seja, o público brasileiro consumidor de informação se depara com algo que é sistêmico e não corriqueiro.

Num local de trabalho com 81 senadores, todos se conhecem e tem a obrigação de dominar o rito interno e as normas de funcionamento desta parcela do Poder Legislativo. Ao locupletarem-se os representantes majoritários dos estados cometeram dois tipos de crime. Uma parte, por usufruir de modo criminoso do patrimônio coletivo para fins privados, na maior parte das vezes por razões infames. Outros, por talvez nada fazer, cometem o crime de omissão. Não é válida a hipótese de inocência política nesse nível decisório. Menos ainda de desinformação. Desinformar-se do funcionamento do parlamento sendo detentor de mandato é no mínimo a omissão a qual me referi acima.

Considerando que no mínimo 45% dos senadores ainda são contra o afastamento de Sarney (PMDB-AP e base de apoio do governo Lula) da presidência do Senado, a “crise” continua e não ouso antecipar um desfecho provável. O de praxe é a medida da Mesa Diretora de afastar de suas funções dois diretores da câmara alta. Além disso, a Comissão encarregada de analisar os atos secretos concluiu seu relatório, responsabilizando Agaciel Maia, ex-diretor da Casa, como executor dos chamados atos secretos. Até aí mais do mesmo, porque é parte do jogo a corda estourar embaixo. Um homem de confiança, em sendo leal ao seu padrinho político, vai cair sozinho e em silêncio. Em geral, estas atitudes costumam ser bem recompensadas pelos que manipulam recursos públicos para fins privados.

Que os otimistas me desculpem, mas até agora a única boa nova para a lavagem geral das entranhas do Senado da república é a solicitação de auditoria externa a ser executada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). O alvo das investigações será a revisão dos contratos para aquisição de produtos e serviços. Terão trabalho de sobra e pressões abundantes. Esta pode ser uma boa notícia caso os auditores consigam responsabilizar os mandantes e não apenas os operadores de contratos. Isto porque vejo uma ação desta monta como ponto de partida e não de chegada. Ou seja, além de auditar, o Senado tem de ser redimensionado.

O insulamento e a autonomia de um órgão de Estado não são nenhuma novidade

O gigantismo e a falta de missão é um problema crônico de estruturas afins. Todo órgão de Estado superdimensionado tende a mover-se de forma previsível na defesa de interesses próprios. O caso mais contundente da história do Brasil recente foi o da chamada comunidade de informações nos últimos anos da ditadura. O Sistema Nacional de Informações (Sisni) e o Serviço (SNI) tinham em total mais de 20.000 pessoas a tempo completo ou parcial dedicados a produzir informação motivada por uma doutrina de segurança e desenvolvimento já em decadência. A segurança interna do regime não tinha inimigo em armas para combater e o desenvolvimento almejado com o Brasil Potência e no 2º Plano Nacional de Desenvolvimento se encontravam solapados pela dívida externa e a inflação galopante. Sem alvo legítimo, a luta se tornou autofágica. Os porões continuavam sombrios e dedicaram-se a assombrar os arautos da Abertura gradual e restrita. Após o atentado do Riocentro (1º de maio de 1981), não houve remédio que não desmontar a estrutura de comando interno paralelo, dissolvendo os Doi-Codis. Ainda assim, os danos residuais seguem com a ação dos irregulares do extinto SNI agindo na ponta de operações internas compartimentadas e de duvidosa legitimidade.

Se nos valermos do triste exemplo do “monstro da comunidade de informações”, segundo um de seus criadores, Golbery do Couto e Silva, é necessário cortar na carne e fazer drástica redução de pessoal não concursado. Se for para fazer uma limpeza no modo de funcionamento do Senado, a auditoria é só o começo. No momento, a opção válida parece ser o afastamento de Sarney, um movimento habitual de entregar alguns anéis para não perder todos os dedos.

Pode parecer implicância, mas a compreensão da chamada “crise” do Senado passa por uma divergência interna na base do governo, rachando a apertada maioria ali. Não houvesse a disputa entre Tião Viana (PT-Acre) sendo apoiado pelos tucanos e derrotado pelo senhor do Maranhão embora seja senador do Amapá e nada haveria saltado nem ocorrido. Assim, julgo não ser nem relevante nem válido nenhum discurso de moralismo interno entre senadores. O gigantismo do Congresso como um todo e do Senado em particular é um convite para o insulamento de um poder que representa muitas vezes apenas a si mesmo e aos 10 mil de seu entorno direto. A devassa teve e terá de vir de fora. Espero que isso seja apenas o começo.

Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

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