Bruno Lima Rocha, 14 de setembro de 2016

Na tarde de 14 de setembro, a forca tarefa da Operação Lava Jato do Ministério Público Federal (MPF) de Curitiba convocou uma entrevista coletiva. No momento, os procuradores, liderados por Deltan Dallagnol, apresentaram denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a sua esposa, a ex-primeira dama Marisa Letícia. Na apresentação em power point, dois procuradores, um auditor da Receita e um delegado da Polícia Federal desenvolveram uma tese de ciência política, o que causou comoção nos meios políticos e jurídicos brasileiros. Na tese, foram afirmados neologismos com carga conceitual, promovendo acusações seríssimas contra o período de Lula à frente do Palácio do Planalto (2003-2010) e dando a entender que o volume de negócios de Estado atravessados por relações pouco ou nada republicanas (corruptas) passaria pela centralidade decisória do ex dirigente sindical e seus correligionários em postos-chave.

Nos parágrafos que seguem, apresento um breve esforço de análise, realizado ao calor da hora, tanto da coletiva do MPF em Curitiba, como do dia seguinte. Na tarde de 15 de setembro, Lula falou para a mídia e correligionários aproveitando o momento em que a direção nacional do PT se reunia em São Paulo capital. Aas intervenções dos personagens centrais deste drama político brasileiro centralizam meus comentários e interpretações. A dimensão estrutural é meu interesse de fundo, assim como o processo recente de golpe de Estado antecipado pela quebra do pacto de classes que caracterizou o lulismo durante os dois governos de Luiz Inácio e em um mandato de meio da ex presidenta Dilma Rousseff.

SOBRE A LAVAJATO, PROPINOCRACIA E A PRETENSÃO DE ALGUNS PROCURADORES FEDERAIS

Realmente a impressão que dá, é a convicção dos jovens procuradores de terem sido eleitos, através de concurso público, para uma missão renovadora republicana. A impressão é justo o oposto, passando a percepção de abuso de poder. Pois, cabe perguntar: – Quem votou nos procuradores federais para promoverem uma reforma constitucional, a ponto de inventar um termo que define conceitualmente a forma de governo de fato no Brasil?

No intento de afirmar um posicionamento analítico e normativo, é necessário um esforço de assertivas. Começo afirmando que, sim, entendo que houve corrupção estrutural com Lula, José Dirceu, Vaccari e cia. E, sim, houve certa continuidade entre o Mensalão e os esquemas de propina da Petrobrás. Obviamente que isso não se constitui em uma conspiração de primeiro escalão, para criar uma forma de governo e seguir à frente do Poder Executivo de forma ilícita;

Já a tal da “Propinocracia” não é uma evidência de modus operandi mesclado com modus vivendi. O que o procurador Deltan Dallagnol pronunciou ao vivo em Curitiba, no meu entendimento, é uma ópera político midiática, que de jurídica tem pouco e de ciência política nada! Porque, sejamos francos. Se houve tamanha corrupção estrutural, logo o primeiro escalão do governo de coalizão estava involucrado, sendo beneficiado, ou minimamente fazendo vista grossa. Se há acusação formal contra o lulismo, o aliado e vice-presidente Michel Temer também estaria involucrado, mesmo que o fosse de forma indireta.

Racionalmente me parece impossível afirmar com segurança a correção absoluta do primeiro escalão do partido de governo deposto. Logo, se os dirigentes petistas sim se beneficiaram, o fizeram em uma escala semelhante ou inferior dos partidos de governo das coalizões anteriores. Afirmar que houve uma exceção no período lulista é um absurdo. Não há excepcionalidade, e sim variação do modelo de acumulação.

Ao mesmo tempo que as baterias estão voltadas contra o PT, o inverso também é verdadeiro. O fato das delações que implicam em dirigentes tucanos não serem transformadas em acórdãos de delação premiada é uma evidência da punitividade seletiva e da exposição midiática cuidadosamente censurada.

No interior do aparelho de Estado temos um problema enorme. Procuradores, magistrados e delegados de alçada federal estão passando dos limites, se transformando em uma nova tecnocracia com ambições próprias e ideologicamente alinhadas com o liberalismo como forma ideal de governo e desenho do Estado. Equivalem aos kemalistas, “jovens turcos” do liberalismo, uma camada tecnocrática, afirmando o próprio mérito e fazendo uma cruzada seletiva no Brasil.

Do ponto de vista político temos um problema ainda maior. Entendo que se houve um crime do PT, este é político. Cometeram um crime com a esquerda brasileira como um todo, ao expor a maioria de nosso povo a esta condição vexatória de se imiscuir com o inimigo, andar ao lado do inimigo, viver como o inimigo, mesclar-se com o inimigo e terminar “traído” pelo ex-inimigo de classe, oligarca, racista e pró EUA. Quem traiu quem? Quem se corrompe ao ficar semelhante aos inimigos do povo? Ou quem se aliou com a ex-esquerda por conveniência, e a abandona por convicção?

LULA E SEU LABIRINTO

Durante a fala, defesa pública e fala com a mídia realizada por Lula na tarde de 15 de setembro, fui recortando pedaços de seu discurso e realizando um debate mais estrutural. Entendo que a síntese da crise política brasileira se baseia no seguinte conflito: a oligarquia se aliou com a ex-esquerda por conveniência e com esta rompeu por convicção. O inverso também é verdadeiro. O outrora partido legítimo, oriundo das lutas populares brasileiras no período da Abertura e Transição, torna-se uma legenda pragmática, visando o exercício do Poder Executivo para promover melhorias materiais sem avanço ideológico ou organizativo das classes populares e subalternas. Assim, a aliança com a oligarquia e o empresariado nacional, liderado este movimento por Lula e o PT, foi feita por convicção. E sua ruptura, se deu não pela vontade do partido de governo, mas por determinações de forças que compunham a própria aliança, a começar pelo próprio vice presidente reeleito.

Vejamos alguns trechos da fala do ex presidente. Podemos começar pela caracterização sua da aliança de classes. Lula afirmou o lucro das empresas e a ampliação da rede bancária, facilitando acesso ao sistema financeiro e por consequência, também para a bolha de crédito. Ao reproduzir esta fala, não “acuso” Lula de nada, apenas constato que esta aliança não tinha um fiador, algo que assegurasse a lealdade de setores que têm da deslealdade e na política de ocasião sei acionar por excelência.

Ao defender as instituições e a institucionalidade, Lula aparenta praticar um sistema de crenças inquebrável nas bases do Estado burguês e pós-colonial. Sinceramente, parece crer mais do que a própria burguesia brasileira ou as tecnocracias de carreira no Estado. Mesmo sabendo que o discurso político passa também por uma capacidade interpretativa, o ex presidente por vezes exagera. Ao pedir “compreensão aos meninos de Curitiba”, parece desconhecer ou menosprezar a presunção e arrogância dos jovens profissionais concursados, a missão auto imbuída de “limpar” o Brasil, e também a noção difusa de racismo de classe, como precisamente caracteriza Jessé Souza.

Lula também se comparou a Lech Walesa. Sinceramente, conforta a comparação pois por mais de uma década eu a fiz e quando a publicava, era severamente ofendido pelos seguidores de Lula e correligionários. Walesa também foi um sindicalista que não compartia ideias de combate de classes embora tivesse hábitos incorporados da classe trabalhadora polonesa. Terminou alinhando-se muito mais à direita do que Lula, e no ostracismo político. Com Lula não há ostracismo, até porque a direita que não fez parte do governo de coalizão e os oligarcas que o traíram, jamais permitirão que o ex presidente tenha paz.

APONTANDO CONCLUSÕES: UM ESFORÇO DE CATEGORIZAÇÃO POLÍTICA NESTA CRISE

Como analista normativamente vinculado bem à esquerda do espectro político, cabe a tarefa permanente de categorização desta crise política. Categorizar é sempre mais um esforço de demarcar os campos. Vejamos. Sim, estamos diante de um golpe parlamentar, onde a frágil soberania popular está sendo ludibriada. No epicentro deste processo, a “república de Curitiba”, capitaneada por magistrados, procuradores, delegados e auditores com pretensões próprias de poder e desenho de Estado. E, ainda assim, não podemos confundir os níveis. Lula não é um militante de esquerda e majoritariamente seu partido tampouco. Isso não invalida a tese do golpe e menos ainda a resistência a este golpe.

Repito novamente. Todos conhecemos centenas de petistas que pensam ao contrário do que afirmamos acima e não estão “sujos”. Discordo deles e delas, mas respeito suas posições por desejarem o melhor para a maioria. Respeito não é condescendência. Discordo profunda e estrategicamente, pois estas posições se encontram muito distantes daquelas que, organizadamente, eles mesmos a abandonaram, logo após a derrota eleitoral no final da década de ’80. Mesmo não compartilhando a tese do reformismo radical (abandonada pelo PT já na década de ’90), seria incorreto não reconhecer esta legitimidade de outrora. Na conjuntura atual, separar as categorias é quase como um manual de sobrevivência política.

Logo, as posições vêm com relativa autonomia. Estar contra o golpe não significa aderir à defesa de Lula, Dilma e cia. Isto porque estar contra o golpe e mais à esquerda implica em lutar pela manutenção e ampliação dos direitos coletivos, assim como aprofundar o alinhamento do país com a América Latina e as relações Sul-Sul. Ou seja, ir contra o viralatismo, o entreguismo, os imperialistas e toda uma camada dirigente e dominante composta por mentalidade de colonizados.

Enfim, é possível estar contra o golpe sem reboquismo, sem política de mal menor, e tampouco aderir ao lulismo.

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