Bruno Lima Rocha, 26 de setembro de 2016
Finalmente aconteceu. Dentro do prazo previsto, a denúncia foi acatada, conforme era esperado nos políticos. O juiz federal Sérgio Moro aceitou, na tarde de 3ª dia 20 de setembro, a denúncia dos cruzados do Ministério Público Federal (MPF) de Curitiba. O ex-presidente Lula, dona Marisa Letícia, Paulo Okamotto e os diretores executivos da construtora OAS, já arrolados em outras denúncias. É inevitável especular sobre as possíveis consequências da condição de Lula como réu federal pela segunda vez neste ano. O fato é, quando e se Moro pedir a prisão preventiva de Lula, o país pega fogo e a legitimidade do PT estará reconstruída por decreto.
O Brasil vive uma reviravolta atrás da outra. Quando pressupomos que haverá alguma estabilização do governo usurpador, um novo fato da Lava jato acelera o moto contínuo. Isso se dá por diversas razões, dentre elas a decepção dos ex-reformistas ao constatar que o Estado burguês, liberal-periférico e pós-colonial não é “neutro”, tendo em sua coluna vertebral, estamentos intocáveis, o tempo todo brigando para aumentar o próprio poder de barganha. Quem faz a denúncia contra o ex-presidente é uma tecnocracia ascendente. Todas as hipóteses e suspeitas anteriores vão se comprovando na medida do andar da Operação Lava Jato. Trata-se da ascensão de uma nova camada dominante, uma tecnocracia de Estado orgulhosa de sua própria trajetória, ideologicamente liberal e pró-EUA e realizando atividades formais que ultrapassam, e muito, as capacidades formais destes operadores jurídicos. Não defendo em nada Lula ou o lulismo como pacto de classes, mas é preciso estar atento e forte. Se na etapa atual o alvo é o ex-sindicalista que não praticou a luta de classes à frente do Poder Executivo, amanhã, com quem será?
Logo, apontamos a conclusão em duas dimensões:
– a primeira é admitir que a Lava Jato supostamente opera de forma seletiva, ao menos quando os alvos são políticos de carreira e o aceite ou não de delação premiada quando o conteúdo delatado atinge o alto tucanato;
– a segunda é lamentar pelo fato de que a ex-esquerda ganhou na bandeja a hegemonia dos atos de Fora Temer, Contra o Golpe e por Eleições Diretas com a aceitação da denúncia por parte de Sérgio Moro.
Para entender o tamanho do fosso onde a ex-esquerda se metera e o debate estratégico o tempo todo escondido e postergado, é necessário debater minimamente o tema da hegemonia.
Uma evidência da derrota na luta pela hegemonia político-cultural
O golpe branco consumado em 31 de agosto de 2016 no Senado foi o ponto culminante de um processo de acumulação de forças mais à direita no Brasil. Este processo, não começou na rebelião popular de 2013, mas sim logo após, quando as “lideranças” formadas pelos institutos e grupos de pressão (think tanks versão colonial) aproveitaram a tática de mobilização via internet. Já em 2014, passado o segundo turno de tipo plebiscitário, começou o processo de “venezuelização” do país, com o terceiro turno ultrapassando as ultrajantes negociatas pela tal da governabilidade e sofrendo pressão direta da nova direita ensandecida tentando aplicar o mapeamento político dos EUA aqui.
Se há uma lição que pode ser extraída deste processo é a necessidade de urgente de conceituar e disputar a hegemonia político-cultural. Não se trata de gaguejar verbetes de manual ultrapassado, mas sim de expurgar esta ideia nefasta que ideologia é super-estrutura e como tal é reflexo das condições materiais de vida. Digo mais. A própria representação de super e infraestrutura, assim como a terminologia “condição objetiva” e “condição subjetiva” são perigosas fantasias. Se houvesse condição objetiva na infraestrutura, o viralatismo não seria hegemônico na classe média, e não haveria entreguismo nas camadas dirigentes e dominantes. Por treze anos, pouco caso se fez das estruturas de poder societários e das condições de reprodução ideológica, especialmente na relação com os grandes grupos de mídia e a eterna penúria da comunicação alternativa.
Com o golpe, supostamente os problemas estariam ultrapassados e as ilusões liberal-democratas burguesas superadas, correto? Não. Agora na etapa de resistência, há disputa por esse protagonismo entre os adeptos do governo deposto e as oposições mais à esquerda (eleitorais ou não). No que diz respeito à mídia alternativa, o problema é maior. Não apenas os chamados “blogs sujos” e oficiosos do lulismo (de linha adesista ou crítica) padecem por escassos recursos, como não se chega perto de uma economia de sobrevivência nem para a mídia oficiosa do governo moribundo. Sobram evidências, mas uma realmente salta aos olhos.
É de praxe que direções sindicais coloquem anúncios pagos em veículos dos conglomerados de mídia locais. Estes, em sua maior parte subsidiários dos grandes grupos, terminam por sugar escassos recursos advindos da contribuição dos trabalhadores e, ajudando a financiar sua programação. Enquanto operam como bomba de sucção do caixa de diretorias pouco ou nada combativas, ao mesmo tempo, desconstroem o direito de greve, defendem abertamente o fim da CLT, difundem ideologia individualista e burguesa, poluindo corações e mentes com o mais nefasto imaginário capitalista. Os mesmos valores, se aplicados em consórcios locais ou estaduais de mídia alternativa, fariam toda diferença, tanto nas rotinas produtivas como na possibilidade de aumentar a democracia de base no seio da esquerda.
A derrota político-cultural já começa na ex-esquerda, a partir mesmo de um lócus de excelência, as direções sindicais quando transformadas em burocracia semipermanente. A mesma estrutura de mentalidade se nota na participação em conselhos de administração de estatais poderosas, ou a posição acrítica quanto ao papel dos fundos de pensão no período lulista, reforçando, em última instância, a jogatina financeira. O fosso deixou de ser episódico, tornando-se estrutural e estruturante. Remontar estas mentalidades vai implicar, necessariamente, sofrimento e ruptura, tudo simultâneo à resistência ao pacote de leis regressivas e os custos do golpe de Estado, em termos de dilapidação do patrimônio público e o entreguismo vira-lata que atravessa o governo usurpador.
Apontando conclusões: estamento, democracia indireta e a hegemonia à esquerda
Quanto ao estamento judiciário (hegemônico, não totalitário), definitivamente nunca fui tão convicto. É necessário lutar por uma sociedade onde o Direito seja de todas e todos e não exclusivo aos tecnocratas que dominam o tecnicismo dos operadores jurídicos. O Direito é diferente da Justiça, distante da Lei e anos luz de seus operadores. Experiências neste sentido existem na América Latina contemporânea e ancestral; logo, urge conhece-las, incorporando-as nos programas políticos de novas instituições sociais.
Quanto aos representantes de carreira e a vertente liberal da democracia (indireta e representativa), e presumível que esta versão liberal-brasileira siga manipulando o voto popular em uma sociedade profundamente injusta e desigual; produzindo políticos profissionais que tendam a legislar em causa própria ou na defesa de seus patrocinadores. Logo, radicalizar a democracia disputando seu conceito-chave é uma exigência. Isto porque, na democracia direta, assentada sobre a igualdade sócio econômica, o inverso da legislação em causa própria e da sobre representação de elites e classe dominante, também seria verdadeiro.
Vale lembrar a evidência. É esta legislatura que derrubou um governo eleito (com maioria de centro-direita) e ao qual a maioria parlamentar então “aliada”, tenta, em todo momento, explicitamente legislar em causa própria. Sim, estamos diante de um golpe parlamentar, onde a frágil soberania popular está sendo ludibriada. Não, Lula não é um militante de esquerda e majoritariamente seu partido tampouco. Isso não invalida a tese do golpe e menos ainda a resistência a este golpe.
Estar contra o golpe não significa aderir a defesa de Lula, Dilma e cia. Estar contra o golpe e mais à esquerda implica em lutar pela manutenção e ampliação dos direitos coletivos, assim como aprofundar o alinhamento do país com a América Latina e as relações Sul-Sul. Ou seja, ir contra o viralatismo, o entreguismo, os imperialistas e toda uma cambada de colonizados.
Enfim, é possível estar contra o golpe sem reboquismo, estar contra o golpe sem política de mal menor, e sem aderir ao lulismo.