23 de junho de 2018, Bruno Lima Rocha
Pode parecer um tema repetitivo, ou redundante, por vezes quase uma tentativa desesperada de “salvar a significação” do mundo da bola para o pensamento crítico ou, porque não, um intento meio que desesperado de sair do lugar comum. Mas, em épocas de Copa do Mundo da FIFA (sim, a competição é organizada pela URGH, FIFA) percebo que há algo além de uma transmissão monopolizada – na TV, aberta – ou o duopólio das transmissões radiofônicas ou nos canais por assinatura.
O entorno de uma Copa implica uma gigantesca movimentação econômica, cotas astronômicas de patrocínio e a tentativa de adesão acrítica para a emissora líder sem concorrentes em rede aberta. Logo, podemos afirmar que os descaminhos do capitalismo ajudam a perder o impacto do jogo. Na Copa do México, 1986, por exemplo, a Globo, disputava audiência com a Bandeirantes (ainda com Luciano do Valle à frente), com o consórcio SBT-Record e a extinta TV Manchete. Ainda vivíamos o período do “papo de esquina” sem cair na mesmice da assepsia social – estúdios “clean” – com um pacote de mauricinhos (esteticamente falando) conversando com “seriedade” e, na rede aberta, o processo tétrico de “leiferização” das transmissões esportivas, onde a magia e a poética do mais abrasileirado de todos os esportes se encontra refém da disputa na base do “vale tudo pela audiência”.
Ou seja, a falta de concorrência aumenta o abuso de fórmulas consagradas, onde reduzir a aleatoriedade da mudança de telespectadores termina sendo o mais importante. E, ao mesmo tempo, conduzir o debate nas segundas telas – as “redes sociais” do embate contra quem trabalha na mídia “esportiva” – é a garantia da navegação multiplataforma, mantendo a audiência no sentido de seguimento e subordinação.
Por um lado, é fato, a crônica esportiva é tão constitutiva do jogo e do entorno como as instituições clubísticas, a cartolagem e a matriz africana da forma de se movimentar do futebol brasileiro. Por outro, a mesma assepsia dos estúdios de TV se verificam na “falta de amor à camisa”, onde uma carreira rápida e muito arriscada pode implicar a salvação financeira de uma família, ou a condenação à sobrevivência perene, considerando que o país deixou atrás o período da bonança do boom das commodities e do pacto de classes interno.
É importante notar que vários aspectos da crônica esportiva brasileira eram pontos de contato com a linguagem popular, na simbiose das óperas do povo em estádios lotados através de ingresso barato. Todos nós sabemos – e criticamos – a euforia da ditadura com o futebol e a criação de gigantescos estádios após a conquista do tri em 1970. Mas, é preciso reconhecer que os templos futebolísticos como Coliseus modernos continha todas as classes e, por algumas horas, mesmo com todos os conflitos inerentes a uma sociedade escravocrata e pós-colonial, o “povo” ganhava forma, com a nata se rendendo à massa, em todos os aspectos. Findo o “espetáculo”, a saída das partidas já demarcava pertencimentos, fazendo da ida ao jogo uma aventura e o retorno – em especial de partidas noturnas – uma loteria.
Com a elitização do acesso aos estádios, e a receita vinculada aos direitos de transmissão, mais do que a renda da venda dos ingressos, o público passa a ser parte do que é vendido. Pasteurizaram demais, não a ponto de matar a paixão ou a espontaneidade, mas sim no exagero das formas de controle privatizado. Para quem julga exagero, reconheço que ninguém deve sentir falta do risco permanente de “tomar um banho de urina” em copos de cerveja preenchidos com o líquido humano ainda quente. Por outro lado, vender lanche nas “modernas arenas” como se fosse comida de setor internacional de aeroportos é uma violência contra a população.
Só reclamar não adianta, mas é preciso uma constatação realista para apontar saídas, ou mesmo as críticas necessárias. Enfim, a manipulação política grosseira, como a feita pela ditadura em 1970, ou o ufanismo irresponsável e anti-atlético, como a “invasão da concentração” do Brasil em 1950, são fenômenos execráveis. Baixarias assim creio que não se repetem mais, ao menos não de forma tão escancarada. A maior crítica resulta mesmo na forma mercadoria do acesso aos estádios e na insistente sobrevida da cartolagem sob muita suspeita e o esquemão FIFA-CBF. Estando a Confederação Brasileira em desgraça, a Federação Internacional segue monetizando ao máximo, mas sem tanta participação dos herdeiros políticos tanto de João Havelange como de José Maria Marín e do impagável Nabi Abi Chedid.
Para além da economia política do esporte mais entranhado na cultura do povo brasileiro, é necessário reconhecer o sentido de brasilidade gestado por meio século ou mais, consagrado em 1958, passado o trauma de 1950. Há muito ainda para se reivindicar. Destaco a estética brasileira e a identidade coletiva baseada no gesto da massa, na linguagem corporal afro-brasileira com ou sem a bola nos pés e a crônica futebolística como forma de indústria cultural tangível da maioria. Tudo isso é diariamente maculado por forças muito poderosas e piorou. A camisa da seleção brasileira, fruto de escolha popular após o Maracanaço, foi blasfemada pela nova-velha direita no transe político reacionário iniciado no terceiro turno de 2014, culminando no golpe coxinha de 2016. A blasfêmia da coxinhada e a síndrome do viralatismo merecem um texto exclusivo e o mesmo logo sai. Reconheço, está difícil falar só de bola e mais complicado ainda em ver poesia para além da nostalgia. Mas, resistir é preciso, e a alegria do povo no patrimônio imaterial da maioria de Palmares e Pindorama é inegociável.