24 de setembro de 2009, por Bruno Lima Rocha
O artigo de difusão teórica desta semana tenta fazer um pouco de justiça com um personagem da história do Cone Sul que está posto no esquecimento pela maioria dos intelectuais latino-americanos. Estou me referindo a Raúl Cariboni, uruguaio, professor de história e militante libertário, que ocupava o posto de secretário de formação da Federação Anarquista Uruguaia (FAU/OPR33) a partir da metade dos anos sessenta até ser preso ela Forças Conjuntas da repressão, a poucos meses do golpe de 27 de junho de 1973. A ditadura que iniciara no regime cívico-militar com o auto-golpe de Bordaberry, só viria a terminar em 28 de fevereiro de 1985. Durante todo esse período, Cariboni e outras dezenas de militantes da FAU permaneceram encarcerados, e como presos políticos, eram mantidos padecendo de torturas e brutalidade.
Como docente e formador político, sua obra (que na verdade era coletiva, pois tinha o apoio de uma ampla equipe de trabalho), era anônima, concisa e tratava as palavras com cuidado e esmero. O ponto de partida desta pequena série de três artigos é o texto fundamental que Raúl Cariboni escrevera e coordenara sua pesquisa, conhecido como Huerta Grande, ou por seu nome mais científico, A Importância da Teoria. Nas linhas a seguir apresento uma visão da Organização Política de tipo minoria ativa impulsionando a luta popular e não atuando como legenda de tipo partido burguês de intermediação profissional e carreiras políticas a tempo completo. A essência desse texto é a diferenciação necessária entre Teoria e Ideologia . O material foi concluído na clandestinidade, nos duros idos tempos do ano 1970.
A relevância do estudo do documento que segue (Huerta Grande; para o texto completo em português, ver no seguinte link) se dá por ser o mesmo, juntamente com o documento chamado (Copey: una crítica libertaria al problema del foco), os textos antecessores da matriz libertária de pensamento, eixo das análises e da escola a qual de forma convicta me afilio. Repito a relevância da forma de autoria. O autor, em suma, é o redator dos debates internos como coordenador de uma equipe de formação política e frente teórica. A intenção do documento original era aportar, de forma sintética, os conceitos básicos para a análise política (visando à incidência), a partir do corpo militante de uma Organização Política de base federalista e libertária.
A “importância da Teoria”
Apresento na seqüência trechos deste texto. Surpreende o rigor e a contundência de um texto que foi escrito em 1970, ganhou este formato aqui apresentado em 1972 e tem vitalidade até o dia e o momento em que redijo estas linhas. O tamanho, pela capacidade de condensar idéias, também é surpreendente. O texto não ultrapassa 4 laudas, em corpo Times New Roman 12, justificado e com espaço simples. Na seqüência, apresento comentário, complemento ou críticas de minha autoria. Para facilitar a compreensão, neste sub-tópico, todas as citações são do original chamado de Huerta Grande e todo o texto não citado, incluindo os grifos, são meus.
O primeiro tema relevante que Cariboni aborda logo no início do texto é o “pensar corretamente”, quando este nos diz que:
Para entender o que acontece (a conjuntura) é preciso poder pensar corretamente. Pensar corretamente significa ordenar e tratar adequadamente os dados que se produzem, em quantidade, sobre a realidade. Pensar corretamente é a condição indispensável para analisar corretamente o que acontece em um país em um momento dado da História desse país ou de qualquer outro. Isso exige instrumentos. Esses instrumentos são os conceitos. Para pensar com coerência é necessário um conjunto de conceitos coerentemente articulados entre si. Se exige um sistema de conceitos, uma teoria. Sem teoria se corre o risco de pensar cada problema só em particular, isoladamente, a partir de pontos de vista que podem ser diferentes em cada caso. Ou em base a subjetividades, palpites, aparências, etc.
Nota-se que o texto aplica uma definição de que pensar corretamente significa ordenar os dados apreendidos das realidades (ao menos àquelas que são aparentes e tangíveis) e ter uma formulação discursiva coerente com os objetivos e condicionalidades às quais o corpo organizativo está subordinado. A articulação coerente do pensamento implica na utilização de um instrumental teórico, cuja dimensão “técnica” não pode amortecer e nem subestimar a dimensão ideológica (ontológica) motivadora do sistema de crenças, já desenvolvido como doutrina e que mobiliza este conjunto de homens e mulheres. A articulação coerente do sistema de pensamento instrumentalizado (através do corpo conceitual), subordinado aos objetivos, dentro de um marco estratégico e motivado (orientado) pela dimensão ideológica é o que pode possibilitar a visão totalizante.
Assim, a objetividade estratégica, é dotada de fatores como os de acúmulo, de posição, de movimento, de aglutinação, de concentração, de manobras com envergadura. Estes fatores estão dentro de um marco totalizante de um sistema de pensamento político-estratégico, que é uma teoria formada por conjunto de conceitos coerentes e articulados entre si. Deste modo, pode a Organização superar as particularidades, subjetividades, impressionismos e especificidades de cada conjuntura, sujeito social, frente de inserção e ambiente onde se está incidindo.
Cariboni segue na crítica e análise preditiva da importância da articulação da teoria com a prática política: “um partido/organização pode evitar graves erros porque pensou a si mesmo a partir de conceitos que tem um grau importante de coerência. Também cometeu erros graves por um insuficiente desenvolvimento de seu pensamento teórico enquanto Organização”.
Entendo que a observação acima se aplica na diferenciação de Programa de Trabalho para uma Linha Geral de agitação pautada pelo calendário de reivindicações já consagradas, datas históricas e a pauta das eleições parlamentares e para o Executivo. O desenvolvimento teórico e a boa medição das relações sociais do entorno da organização podem assegurar o grau de realismo necessário e a percepção daquilo que é transcendente à própria idiossincrasia do ambiente interno. É preciso ter em mente a busca incessante do Estado da Arte da Teoria Política de Intenção de Câmbio Profundo. Este aprimoramento deve ultrapassar os limites do “preciosismo intelectual”, sendo aquilo que habilita a localização do corpo coletivo (a si mesmo), aos setores de classe que se pretende organizar/representar e a sociedade concreta existente dentro dos limites espaciais onde se está inserido.
Incorporar o rigor da análise de um trabalho para um corpo especializado que fomenta e alimenta o debate interno necessário para o balizamento preciso deste agrupamento humano que se organiza como associação voluntária integrativa. Esta tarefa, de animação permanente, intenta fazer dos militantes a massa crítica com alguma capacidade de formulação, de modo que a universalização dos conceitos básicos e de uma carga razoável de informações possibilite o nível formativo necessário para dar existência real às determinações orgânicas de democracia interna.
Indo ao encontro do que afirma Cariboni, vemos a sua definição de programa e linha política.
Sem linha para o trabalho teórico, uma Organização, por maior que seja, é confundida por condições que ela não condiciona nem compreende. A linha política pressupõe um programa, ou seja, as metas que se quer alcançar em cada etapa. O programa indica que forças são favoráveis, quais são os inimigos e quem são os aliados circunstanciais. Mas para saber isso é preciso conhecer profundamente a(s) realidade(s) do país. Por isso, adquirir agora esse conhecimento é a tarefa prioritária. E para conhecer é preciso teoria.
Para concluir
Os ensinamentos da geração de Raúl Cariboni além dele próprio, nos oferecem condições de pensarmos corretamente para solucionar os problemas para uma atuação a partir dos setores de classes oprimidas de hoje. Existe a necessidade de se avançar numa Teoria de corte totalizante conhecida como interdependência estrutural, e a partir dessa, apontar a uma Teoria de Processo de Radicalização democrática que dá o suporte para pensar em termos estratégicos. Na ausência desta Teoria de Câmbio Profundo – através da expansão da democracia direta e participativa como motor de lutas populares – não há mudança estrutural alguma, pois inexistem os agentes políticos que a isso se propõem. Assim, a coerência conceitual obriga a existência de um corpo teórico à altura desse desafio e proposta.
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos (IHU)