08 de outubro de 2009, por Bruno Lima Rocha
Neste último artigo da série, concluímos a releitura crítica da obra coletiva coordenada pelo professor de história, militante sindical e libertário uruguaio, Raúl Cariboni. Relembro que a obra ganhou o correto nome de Huerta Grande (horta grande em português, cuja versão neste idioma se encontra aqui neste hiperlink) e condensa em menos de seis laudas datilografadas, um resumo conceitual na forma de manual de aplicação para os operadores da política não institucional.
A ênfase de seu trabalho está em precisar conceitos que diferenciem de forma categórica a ideologia da teoria, ou seja, do campo das aspirações, representações, idéias difusas, símbolos e identidades, do campo da articulação conceitual coerente, que é inspirada na ideologia, mas desenvolvida de modo científico e não somente com os engajamentos individuais e coletivos. Para dirimir a confusão e apontar de algumas diferenças entre teoria com ideologia é abordada na seqüência esta fração de texto.
A análise profunda e rigorosa de uma situação concreta, em seus termos reais, rigorosos, objetivos, será assim uma análise teórica de caráter o mais científico possível. A expressão de motivações, a proposta de objetivos, de aspirações, de metas ideais, isso pertence ao campo da ideologia. A teoria torna precisa, circunstancializa as condicionantes da ação política: a ideologia motiva-a e a impulsiona, configurando-a em suas metas "ideais" e seu estilo. Entre teoria e ideologia existe uma vinculação estreita, já que as propostas destas se confundem e se apóiam nas conclusões da análise teórica. Uma ideologia será tanto mais eficaz como motor da ação política, quanto mais firmemente se apóie nas aquisições da teoria.
Esta definição acima é uma necessidade que entendo ser atual. Isto porque a confusão entre teoria e ideologia é presente e permanente tanto no campo da prática política como na perspectiva do trabalhador intelectual com vocação científica e acadêmica. No rigor da proposta, Cariboni diferencia a dimensão ideológica, que eu denomino ideológica-doutrinária, e dialoga com a proposta onde modestamente tenho adesão, caracterizando a dimensão ontológica como sendo de natureza não-científica (portanto equivalente à dimensão ideológica). Já a teoria, pela interpretação que faço de Cariboni, equivale às dimensões intrínsecas e extrínsecas do esqueleto-teoria; e o seu produto tangível, quando aplicado na incidência, tem seu equivalente na prática política.
A meta de desenvolvimento da teoria é equivalente ao grau de especificidade necessário para a mesma. Manter a capacidade totalizante sem frear os avanços é uma equação delicada e que cabe à Organização Política definir. Entendo que não há limites para o desenvolvimento intelectual, mas há limites para o trabalho teórico. A massa de dados, de informações brutas, que passem pelo ciclo de inteligência, será tão operacional quanto à capacidade de gerar um bem tangível com este ordenamento. Uma massa de dados brutos e bem analisados pode fundamentar um discurso acachapante. Este mesmo discurso será tão ou mais contundente à medida que as categorias centrais estejam definidas e postas em conflito com as categorias usadas pelo adversário. O parágrafo abaixo aborda de forma contundente as limitações do trabalho de uma frente teórica vinculada a uma organização política. Esta analogia pode ser feita também com o conhecimento produzido em nossas sociedades e que se localizam no campo das ciências humanas e sociais aplicadas.
Fica dito com isso que o processo de conhecimento da realidade social, como o de toda realidade objeto de estudo, é suscetível de um aprofundamento teórico infinito. Assim como a física, a química e outras ciências podem aprofundar infinitamente o conhecimento das realidades que constituem seus respectivos objetos de estudo, a ciência social pode aprofundar indefinidamente o conhecimento da realidade social. Por isso é inadequado esperar um conhecimento "acabado" da realidade social para começar a atuar sobre ela tratando de transformá-la. Não menos inadequado é tentar transformá-la sem conhecê-la a fundo.
Sendo o conhecimento “suscetível de um aprofundamento teórico infinito”, Cariboni afirma ser esta capacidade interminável, inesgotável. Portanto, o grau de medição da profundidade necessária para influir e incidir sobre e desde uma determinada sociedade tem de ser algo definido. O debate típico entre comparatistas e especialistas não cabe em uma frente teórica de uma Organização Política. Se por definição ideológica o modelo aqui advogado não entende como legítima a limitação do desenvolvimento intelectual, este mesmo modelo se pauta por uma operacionalidade. Assim como entendo ser a normatividade interessante para a ciência política, desde que a mesma paute e fomente a tangilibilidade dos conhecimentos, não cabendo neste propósito, portanto, a teoria normativa pura. Por vezes, o excesso de dados complexifica de tal forma a análise que torna a mesma inoperante. O mesmo vale para modelos abstratos e cujas variáveis são tão grandes que só podem se dar sobre uma linguagem de equação matemática e cuja modulação só é viável através de um programa de computação altamente desenvolvido.
Tal como afirma Cariboni no parágrafo acima, a medida da profundidade deve ser determinada de acordo com o desenvolvimento teórico, a massa crítica e a capacitação dos analistas. O preciosismo das pequenas variações semânticas, marcados pela “guerra de posições” entre intelectuais especializados, em geral com carência de definição substantiva dos próprios conceitos – ou dos fenômenos conceituados e caracterizados – são tão inúteis para análise política como a simplificação absurda e o temor a complexidade societária que vivemos. Para o Jogo Real da Política, não cabem nem preciosismos alimentados na vaidade intelectual e menos ainda os esquemas importados de outras sociedades. A validade se dá na articulação coerente de um sistema de conceitos que gera um grau de certeza suficiente e que não se confunde com a cegueira teórica e a distorção simbólica – fruto da análise pobre e da pouca crítica interna.
A crítica a esta confusão entre discurso ideológico e pobreza teórica é caracterizada por Cariboni. Impressiona a validade de seu discurso.
Em uma realidade como a nossa, com a formação social de nosso país, o desenvolvimento teórico tem que partir, como em todas as partes, de um conjunto de conceitos teóricos eficazes, operando sobre uma massa o mais ampla possível de dados, que se constitua a matéria prima da prática teórica. Os dados por si só, tomados isoladamente, sem um tratamento conceitual adequado, não dão noção da realidade. Simplesmente adornam e dissimulam as ideologias a cujo serviço se funcionalizam aqueles dados. Os conceitos abstratos, em si mesmos, sem se encaixar em uma base informativa adequada, não aportam tampouco ao conhecimento das realidades. O trabalho no campo teórico que se desenvolve em nosso país, flutua habitualmente entre ambos extremos errôneos.
No trecho acima, Cariboni traça a diferença entre conceito operacional e conceito abstrato. Como já dissemos antes, a abstração faz parte das idéias-guia, dos conceitos doutrinários, não cabendo a função de conceitos essencialmente abstratos para a prática teórica aqui apresentada. O tema da “dissimulação da ideologia” a vejo não como a caracterização da ideologia como falsidade, mas sim com o mascaramento das opções doutrinárias como sendo de “ordem técnica”. Por estar em contra esta postura, posição esta que faço acordo, o autor uruguaio faz a crítica simultânea tanto do empirismo como da teoria normativa pura.
No caso da empiria pura e bruta, afirma que quando a massa de dados não tem ordenamento lógico e nem atende a uma dimensão ideológica previamente definida, a mesma está ordenada por um discurso síntese fruto de uma ideologia que não se apresenta de forma explícita. Esta dissimulação a faz naturalizar-se, sacando assim a capacidade de criticá-la tendo como exemplo e raciocínio justamente a ordenação de dados na forma de um discurso coerente. Já a crítica dos conceitos abstratos, se os mesmos não aportam ao conhecimento da realidade, estes são falsificadores da percepção do real. Afastando a teorização sobre a sociedade da dimensão societária para e desde onde se quer produzir teoria, este corpo conceitual também se confunde com a dimensão ontológica (ideológica), quando muito aporta algo de doutrina, mas não de incidência e muito menos de predição e antecipação de cenários.
Concluindo
Apresentei neste sub-tópico os recortes e fragmentos do texto original de Cariboni (2006), e julguei por bem não comentá-lo todo, apenas as partes mais relevantes para estes três artigos que se articulam entre si. Infelizmente, as linhas e palavras acima, longe de serem de uso comum dos operadores de prática política e dos trabalhadores intelectuais das variações e sub-campos da análise política, estão sendo abandonadas e perdidas ao léu da ignorância e da falta de base de raciocínio analítico.
Digo isso não com júbilo ou com pretensões de arrogância intelectual, mas como uma triste constatação de abandono da teoria como interpretação de um modo onde se deve incidir para transformar. Dessa forma, a própria teoria se assemelha a fantasia de meta linguagens auto-referenciadas, onde se dialoga quase sempre apenas entre supostos “sábios” contaminados por seus próprios egos auto-inflados. Como já afirmei em outras ocasiões, a crise de uma esquerda sem rumo deve ser superada pela determinação da certeza ideológica e do ajuste da ferramenta teórica. Neste sentido, o aporte coletivo do qual Cariboni foi coordenador eleito é uma grande contribuição para as mulheres e homens que voluntariamente se posicionam dessa forma perante as sociedades concretas da América Latina.
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos (IHU).