A maré vermelha – marea roja – não ganha a organicidade necessária para superar o estágio de vínculos com um Estado em reconstrução e não dotado de regras universais de acesso; nesse contexto a presença de organização além do PSUV é essencial para a sobrevivência do próprio processo bolivariano. - Foto:el pais
A maré vermelha – marea roja – não ganha a organicidade necessária para superar o estágio de vínculos com um Estado em reconstrução e não dotado de regras universais de acesso; nesse contexto a presença de organização além do PSUV é essencial para a sobrevivência do próprio processo bolivariano.
Foto:el pais

08 de fevereiro de 2010, do espelho d’água da Lagoa mais sureña do Rio Grande, Bruno Lima Rocha

Sigo esta semana no tema da conjuntura que aborda o conflito político e social na Venezuela. Neste texto, encaramos o tema dos estudantes como força de protesto e da guerra de 4ª geração como arena prioritária do choque e da promoção destas lutas. Para começar, é preciso compreender de que tipo de estudantes nós estamos classificando como de oposição e seus porquês.

Ao mesmo tempo em que seria um exagero afirmar que toda a oposição venezuelana é fomentada pela CIA, não é errado dizer que a dividida e mal organizada oposição tanto ao processo bolivariano como ao governo Chávez tem um grau de articulação com as agências estadunidenses operadoras da política imperialista do Big Stick (porrete grande). Dentre elas está a CIA, e vem daí a referência para os protestos da juventude à direita. Um enlace da Agência que dera certo foi no movimento de oposição sérvio datado de 2000. Com grande criatividade e frescor juvenil, uma gama de universitários do país que fora líder da extinta Iugoslávia conseguiu derrubar o governo alimentado do discurso chauvinista e herdeiro das estruturas de Estado pós-Tito. Nessa luta de ares cívicos, o Império operou com desenvoltura, mesmo porque a defesa daquele governo era um absurdo.

Nada disso se parece com o governo Chávez. Os estudantes da Venezuela que entraram no ensino superior do país através de novas instituições de 3º grau criadas a partir de 1999 superam em 6 por 1 aos alunos de universidades privadas ou os membros da oligarquia presentes nas universidades públicas. Assim, estamos falando que a oposição estudantil manobra potencialmente a no máximo 1/6 dos potenciais participantes de protestos. Se fosse mais organizável a massa de estudantes com vínculos ou identidades bolivarianas aconteceria simplesmente um massacre numérico e a quebra da legitimidade dos escuálidos juvenis ou pitiyankees.

No quesito nível de violência o contraditório é ainda mais gritante. Nas quatro décadas anteriores durante a vigência do Pacto de Punto Fijo (1958-1998), era comum a existência de mortos (assassinados pelas forças da ordem oligárquica) durante as marchas ou perseguições e desaparições forçadas após os protestos pontuais. E, nesse ponto a oligarquia fora razoavelmente salomônica, matando tanto a moradores das barriadas populares como a ferrenha oposição presente na Universidade Central da Venezuela (UCV). Para fazer política em Caracas e ter algum grau de presença, é necessário que cada agrupação tenha certa inserção em ambos os espaços. Os mortos, até 1999, eram conseqüência da repressão da democracia representativa na terra de Ribas e Boves. Como dizia o ex-presidente oligárquico Rômulo Betancourt, “tem que atirar primeiro e perguntar depois!”.

Para esta cultura política e média de incidência repressiva, as forças policiais com lealdade aos níveis de governo sob comando de chavistas (porque as polícias também são estaduais e municipalizadas) incorreram em poucas mortes nos últimos 11 anos. Em sendo a polícia do governo populista pouco violenta (repito: para os índices do país), e tendo Chávez uma base popular mais ampla do que os setores organizados, é quase que uma conseqüência de que seus eleitores queiram mais palo y polvo (cacetete e gás lacrimogêneo) nos jovens opositores. O problema que aqui apresento deriva justamente desse sentimento de respaldar um governo que lhes oferece melhores condições de vida.

Vejamos. Ao defender maior repressão, se reforça também a linha mais oficialista, mais chavista do que bolivariana, mais do PSUV com cara de comício de campanha do que a constelação de partidos e agrupações que estão nesta acumulação desde 1992 que apóiam ou participam desse processo. Muitas destas, inclusive, são anteriores aos dois intentos de golpes – um militar e outro cívico – que lançaram Chávez para a arena principal. O mesmo vale ao revés. Quando se nota um apoio aos índices repressivos, diminuem as possíveis chancelas de ações e atos pela via direta e por esquerda. Basta ver o escândalo que foi o ato dos partidários de Lina Ron (UPV) contra as instalações da RCTV antes de seu fechamento. À medida que os grupos por fora do PSUV vão minguando, pela própria distribuição de cores se ausentam das ruas e da luta direta, assim se delega para o Estado (que não tem concurso público para entrar no serviço) a única legitimidade para levar adiante o processo de câmbio, agora abertamente proclamado “rumo ao socialismo do século XXI”, seja lá o destino que a consigna irá implicar.

Neste e em qualquer processo de câmbio ou conflito, ganhar as ruas é condição prévia para as forças sociais ou político-sociais se imporem diante do governo Chávez e se legitimarem perante a população interessada no processo bolivariano. Isto foi o que ocorreu em abril de 2002 e possivelmente voltará a ocorrer caso se dêem abertos novos intentos de golpe para além dos estudantes de direita e da midiatização de Globovisión e RCTV liderando o Bloco de Imprensa Venezuelana e sua vontade proclamada de manter a mídia como negócio, incluindo audiência significada como opinião pública ou possível base eleitoral. Nunca é demais lembrar o episódio da Faculdade de Serviço Social (Trabajo Social) da UCV, de maioria de mulheres e que chegou a ser cercada por universitários da oposição. No episódio, a direita imberbe ateou fogo de fora do edifício de quatro andares, dispararam tiros para dentro e ameaçavam linchar as pessoas que se encontravam dentro do prédio. Como a polícia metropolitana – então já sob ordens do governo central – foi impedida pelo vice-reitor de entrar no Campus (em defesa da autonomia universitária), coube às formações especiais do bairro 23 de Enero – a saber, militantes populares organizados para o conflito com esta mesma direita e as polícias – retirarem a maioria de mulheres presentes no recinto. Ou seja, se não fosse pela ação direta popular (organizada e com dispositivo a ser mobilizado através de motocicletas) e na ocasião se produziria um massacre, com mortos, linchamentos e violações de mulheres. Claro, tudo em nome da liberdade!

Nada disso é fantasia. A Telesur expõe estas imagens gravadas ao vivo, de dentro e de fora da Faculdade, e aquilo que se mostra é irreparável, não cabendo dúvidas. E, particularmente, conheci gente que lá estava nesse dia ao lado dos estudantes de Serviço Social. A narração é a mesma da Telesur, á exceção de que no texto televisivo, diminuem a relevância dos militantes populares pré-dispostos para a autodefesa. A barriada, quando está regularmente matriculada, ressalta o ódio recíproco que se revela na expansão do ensino superior. Porque com o aumento da oferta de vagas e instituições de 3º grau, se rompeu um funil de ingresso nas camadas de alta educação do país, permitindo que a tomada de decisões numa sociedade complexa seja aumentada.

Embora sempre houvesse esquerda aguerrida e inclusive com vínculo guerrilheiros nas décadas de 1960 a 1980, a massa universitária era uma elite que se via como tal e reconhecia o modo de vida oligárquico e pró-Império como “natural”. Ao quebrar o funil, o governo Chávez estoura as paixões mais entranhadas dos mantuanos racistas, pretensos de sua hispanidade e com profundo desprezo aos setores populares do país.

É esta a ira que se vê nas ruas, reforçada por ex-militantes jovens dos partidos do Pacto pós- Pérez Jimenez, a saber, PRD, COPEI e URD e incrementada por uma estranha mescla de esquerda (ou ex-esquerda) e de extrema direita desorganizada. A organização Bandera Roja, antes muito respeitada, veterana de lutas guerrilheiras posteriores ao MIR e a FALN, contemporânea da Tendência Combativa nos anos 1980 e das Brigadas del Saqueo, se porta e marcha ao lado da direita antes por eles combatida. O mesmo passa com o muito respeitado ex-guerrilheiro Douglas Bravo, reconhecido militante da esquerda do país, e que atira sua trajetória por caminhos duvidosos, expondo-se ao absurdo para ser midiatizado pelo Bloco liderado por Ravel e outros do “Pacto de Puerto Rico”.

Falando em conspiração de direita, o Pacto de Puerto Rico veio à tona quando revelado. Na ocasião, em janeiro de 2009, líderes da oposição e donos ou diretores de meios de comunicação foram flagrados pelo G2 cubano (serviço de inteligência leal aos veteranos do M26 e a hierarquia das forças armadas lideradas por Raúl) em uma reunião promovida pelo Departamento de Estado do Império, uma espécie de Cumbre Golpista. Flagrados pela picardia da experimental Ávila TV em pleno desembarque no aeroporto de La Guaira, o episódio tornou público algo já sabido e reconhecido por quem faz e analisa política na América Latina. Esta foi uma dentre várias Cumbres Golpistas de distintas categorias e relevâncias.

Concluindo o cruzamento de variáveis entre estudantes de direita e meios de comunicação corporativos, pode-se compreender que um retroalimenta o outro. Os universitários da reação tomam algumas ruas e promovem atos de oposição ao governo Chávez. Os meios repercutem multiplicam por dez um fato político diante da midiatização. Já a receita não se dá ao inverso. Quando o governo reprime, soa no exterior como violência contra o direito de protestar. E, quando os grupos além do PSUV tomam à frente e atuam na luta direta, o primeiro que sai declarando em contra e chamando por “disciplina” é o próprio Hugo Rafael! Mas, nunca é exagero lembrar que foram estas mesmas agrupações que tomaram a dianteira em abril de 2002, cercaram o Palácio Miraflores, cortaram as entradas de Caracas, ajudaram a população dos morros a descerem (literalmente!), transmitiram de forma incessante através de rádios comunitárias e tomaram de assalto a TV estatal. Essas foram as condições prévias que geraram o impasse militar e possibilitou a retomada do governo por Chávez. Foram este setores, chamados de ultra-esquerda, até de desleais ou inconseqüentes e não qualquer outra hierarquia do extinto Movimento 5ª República (MVR, então a sigla oficial) e nenhum elemento de tipo direita endógena ou direita vermelha, hoje abundante no PSUV.

Entendo que a capacidade de pôr oxigênio no processo e as garantias de que existe alguma chance do mesmo ser aprofundado para além das instâncias de governo, está justamente no caleidoscópio de organizações sociais, de base, político-sociais e políticas específicas em que, não sendo totalmente subordinadas à Chávez, garantem a continuidade da luta popular para além das razões de Estado ou do fascínio pela conjunção de farda e liderança carismática. Por mais caricata que muitas vezes possa parecer a situação de lá para os analistas colonizados por conceitos da Metrópole, trata-se de cancha aberta e luta ferrenha. A direita venezuelana, embora desorganizada, não está de brincadeira. Menos ainda as frações de jovens que imitam a mão branca e depois negra sérvia contra os herdeiros de Milosevic. A diferença é que os fascistas – ao menos de inspiração – estão do lado escuálido da barricada. E, para além da Metropolitana ou da Polícia Nacional, estão militantes comprometidos com o processo e em ultrapassar seus limites institucionais.

É óbvio que o tema central desta luta vai além da retomada do Estado como ente de serviços públicos e se centra no Poder Popular. Esta nova organização social vai ao encontro e confronta a concepção de democracia representativa, ganha vulto e contorno, e será devidamente abordada posteriormente. O epicentro da luta na atualidade está na legitimidade ou não do que é feito, e se encontra no meio da “loucura”, na guerra ideológica ou de 4ª geração.

No caso do tema de hoje, se e caso o governo acatasse a reivindicação de setores como a Associação Nacional de Meios Comunitários, Livres e Alternativos (ANMCLA) e concordasse com a outorga de 33% do espectro radioelétrico para o controle direto das parcelas de povo organizado para a comunicação social e parte desta mesma luta estaria mais avançada senão concluída. A midiatização seria o avesso do que se tem hoje com os meios oligárquicos referendando a sua parcela da sociedade e a pressão feita pela hierarquia de turno do Estado sob comando de Chávez, fazendo mídia de razoável qualidade, mas com tom oficialista e chapa branca.

A cancha está aberta, mas para as propostas mais à esquerda reconheço que no exato momento o jogo se complica. A soma de protagonismo de rua e midiatização independente forma a condição prévia para ultrapassar parte do controle direto de Chávez e seu primeiro escalão da vez (sendo que a troca é constante). Romper ambas as barreiras, dando combate direto aos estudantes de direita e aos meios corporativos é urgentemente necessário para a seqüência do processo bolivariano com o povo organizado como protagonista.

Este artigo foi originalmente escrito no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

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