08 de junho de 2010, da Vila Setembrina de Lanceiros Negros traídos por latifundiários no Massacre de Porongos, Bruno Lima Rocha
Concluímos esta pequena série de quatro artigos de difusão científica voltada para o pensamento político organizativo, apresentando tanto as raízes desse modelo de partido como também uma possibilidade de desenvolvimento orgânico do mesmo.
A ancestralidade do modelo de organização aqui desenvolvido
O modelo que apresentamos nesta série em particular e nas obras em geral não se trata de uma novidade para o universo da política. Se são novos ou inexistentes os estudos sobre o tema, se esta forma do fazer político não se transformara em objeto estudo, isto se deu devido à correlação de forças no interior das esquerdas, a passagem desta correlação para o campo acadêmico e da óbvia conseqüente ausência de transposição dos debates travados na esquerda mundial para o universo da cultura letrada e com bases cientificistas. Como já foi dito em textos anteriores desta série, este modelo aborda a organização política de militantes especificamente aderentes a um corpo ideológico-doutrinário. Por não ser de massas, em contraposição, está no formato de quadros, sem filiação aberta e cujo grau de compromisso dá-se através dos círculos concêntricos. Na estruturação interna, dentro da Teoria da Interdependência das 3 Esferas, a divisão a forma orgânica tem sua equivalência na esfera jurídico-político-administrativa.
Ainda nesta caracterização, embora não seja exclusividade, em geral se atribui aos aderentes da ideologia anarquista esta forma de se organizar, sendo chamada esta vertente de anarquistas partidários da organização específica. Esta via ganha derivações vinculadas às raízes e origens de cada uma de suas experiências marcantes. É preciso ressaltar que a forma especifista/organicista/plataformista não é a única do anarquismo. Outras vertentes propõem o modelo “federação de grupos” (conhecido também como federação de síntese, ou sintetista) e também a forma “grupos de afinidade (que podem chegar a se organizar em uma federação de grupos ou redes), outros não dividem a ação em círculos concêntricos, fusionando a ideologia com a frente social (tal é o caso do anarco-sindicalismo). Infelizmente, a maior parte da literatura, mesmo a ontologicamente vinculada ao anarquismo, tem uma abordagem mais voltada para a filosofia política dos que professam esta ideologia, e pouca atenção dão à estrutura orgânica e administrativa de suas organizações. O foco deste trabalho em particular e do conjunto de nossas produções na área, é justamente iniciar o debate a respeito dessa estrutura.
Como já disse antes, esta modalidade ganha definições ao longo de sua história, tais como: organicismo, plataformismo, especifismo. São mais conhecidas as grandes divisões do anarquismo em forma de filosofia política. Em geral associa-se a tradição de pensamento aderida à organização específica do anarquismo como anarco-comunista, vinda dos coletivistas de Bakunin (Coletivo Luta Libertária, 2002, pp.10-12). Já a ala que não entende a necessidade de separar o nível político do político-social deu na síntese das idéias de anarquismo e sindicalismo, resultando no anarco-sindicalismo (para a crítica ao conceito expressa por Malatesta, ver Coelho, 2008, pp. 124-126).
A forma de organização de tipo federalista não é nova, como já dissemos. Em 1868, no interior da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT, ver Coletivo Luta Libertária, 2000, pp. 76-79) a então chamada ala federalista tinha em seu interior uma força política organizada denominada Aliança Internacional pela Democracia Socialista (conhecida como Aliança, de tipo bakuniniano, ver id), cujo referente público mais conhecido é o militante russo Mikhail Bakunin (1814/1876, ver Cappelletti 1968). A Aliança tinha um funcionamento de organização de quadros, de tipo “carbonário” e com a maioria de seus militantes atuando em clandestinidade. Alguns referentes públicos eram líderes conhecidos dentro da AIT, e a mesma não atuava dentro de um país ou território em específico. Era usual o envio de delegados e agentes para países e regionais distantes, tanto para organizar socialmente, como para estruturar uma célula da Aliança como para episódios pontuais insurrecionais.
Outra experiência de referência nesse modelo de partido foi fundada em 1891, o Partido Socialista Revolucionário Anárquico (PSRA, conhecido como Partido malatestiano, ver Coletivo Luta Libertária 2002, p. 43) e seu referente mais conhecido é o anarquista napolitano Errico Malatesta (1853/1932, id). Embora contasse com acionar clandestino, o PSRA tinha a forma-partido mais semelhante com a usual. Seus militantes referentes para os níveis de massa (social) e de corrente (político-social) e material de propaganda política. Seus militantes eram mais de tipo polifuncionais, incluindo os tipos de ação direta praticados na Itália da época (da fundação até o golpe fascista de 1922, ver Guérin 1968, pp. 127-131).
Da Revolução Russa, atuando especificamente na Ucrânia, saiu o acumulo de experiência de organização política de massas em meio da guerra civil (1918-1921). O Exército Insurrecional de Camponeses da Ucrânia (Exército Negro, também conhecido como Machnovichna, ou Macknovista, ver Archinov, 1976), cujo referente militante era Nestor Ivánovitch Makhnó (1888/1934, Coletivo Luta Libertária 2001), tinha a hegemonia político-militar-administrativa de vastas extensões ucranianas, e desenvolvia um acionar que partia da produção coletivizada e cuja ponta estava um exército baseado em cavalaria móvel e cujos postos de mando eram todos eleitos. Houve então a fusão organização política/milícia libertária, promovendo simultaneamente a guerra de movimentos, o federalismo político e a autogestão sócio-econômica. Com a derrota para o Exército Vermelho em 1921, alguns sobreviventes do Estado-Maior do Exército Negro voltam a se agregar em Paris, França e escrevem um manifesto político, reconhecido como uma obra de teoria política anarquista chamada de Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários (ver na íntegra em Dielo Trouda 1997). Neste documento, que nos anos 1920 e 1930 teve ampla circulação, estão expressas quatro orientações teóricas básicas para o modelo até os dias atuais: Unidade Tática, Unidade Teórica, Responsabilidade Coletiva e Federalismo.
A exposição de experiências históricas e de acúmulo entre e a partir destas organizações poderia resultar em toda uma série de teses tal como outras obras de fôlego. Mas, para ressaltar aqui neste trabalho, de comum entre estes modelos organizativos está: a seleção de ingresso (partido de quadros); a não participação em eleições estatais (anti-eleitoralismo); a ação de tipo minoria ativa (em contra da concepção de vanguarda de classe); a estrutura federativa interna e defendida como modo de organização social (federalismo político); o uso sistemático da força, em conflitos coletivos e de tipo massivo (ação direta como meio prioritário de gerar fatos políticos); projeção das estruturas sociais organizadas como prioritárias, eliminando a intermediação profissional (protagonismo popular) e a existência de possibilidade de crítica e promoção interna, crescendo o aumento de responsabilidades políticas segundo o grau de compromisso do militante (democracia interna e renovação).
Os exemplos históricos dados acima são referenciais não exclusivos. Aproximando-nos de nossas latitudes, tomamos como base de diálogo as experiências da Federação Anarquista Uruguaia (FAU, fundada em 1956, ver Mechoso 2005, pp.313-316) e da Federação Anarquista Gaúcha (FAG, fundada em 1995, ver FAG 2006). Em nenhum momento afirma-se que as três organizações aqui citadas são mais importantes historicamente do que outras, e no caso do anarquismo latino-americano, que a ideologia se encerra no especifismo praticado no Cone Sul.
Desenvolvimento do modelo de organização aqui apontado
Antes que nada é bom recordar que este é um trabalho de aproximação ao tema do treinamento de quadros. O modelo de partido estudado é justo o contraponto do que a literatura hegemônica em ciência política (ou politologia como prefiro) praticada na América Latina em geral, e no Brasil em particular, coloca como “modelo”. No mínimo se trata do oposto ao verificado em nosso próprio treinamento como cientistas políticos, pertencentes aos escalões menores de uma elite intelectual subsidiada com verba de Estado para desenvolver conceitos e capacidades cognitivas em prol das maiorias dos pagadores de impostos no país.
Por isso o diálogo realizado é com o contraponto do “modelo único” de partido de tipo liberal-burguês, que traduzido para o jargão técnico-científico, seria assim caracterizado: instituições políticas agregativas, com hierarquias burocráticas profissionalizadas e participando da concorrência por parcelas de poder legal-constitucional. Em momento algum tivemos a intenção de ser genericamente normativos no sentido de afirmar que o modelo de partido X é melhor que o modelo de partido Y. Tal tipo de afirmação não resiste a nenhuma análise de rigor. Melhor para que? Qual a instituição adequada para cumprir uma missão institucional que não a sua de origem? Este é o debate de fundo.
O que sim procuramos começar a fazer é um estudo teórico, com rigor interpretativo e dotado de intensidade como o que a literatura pela qual quando pós-graduandos fomos treinados ( me refiro especificamente ao chamado main stream, ou o suposto Estado da Arte da ciência política hegemônica) aplica para os modelos majoritários. A tentativa é de buscar modelos aplicados em hipóteses passíveis de serem pensadas para e na América Latina. E, dentro do realismo científico, levando em conta os fatores determinantes que isto implica.
O treinamento que um modelo de partido tem de aplicar é aquele de acordo com suas necessidades estruturais e objetivos políticos (escalonados em tempo e prioridade). Uma vez que este modelo de instituição política buscaria promover um protagonismo de setores populares, é fundamental para seu sucesso organizativo a presença física e ideológica nestes meios. Isto nos leva a compreender o conceito de habitus como fundamental. Ou seja, o recrutamento deve ser voltado para aqueles que são legitimados nestes meios, isto é, sejam detentores do habitus da classe e segmentos que se quer organizar. Esta hipótese não é exclusiva, mas poupa custos de informação e esforço de treinamento que podem levar anos.
Não se pode, entretanto, delegar a capacidade de fazer política apenas e tão somente às origens e trajetórias dos quadros de uma organização. A trajetória é um ponto de partida para a aplicação do pensamento estratégico, sempre de acordo com os objetivos da instituição. Buscando um modelo complexo de análise, os fatores de treinamento têm de ser somados ao recrutamento (já dotado de habitus) e capacitação analítica. Isto no que diz respeito ao treinamento de formação conceitual e de ambientação no meio que se quer organizar. Fica em aberto nesta série os temas de treinamento técnico ou de aplicação político-técnico, necessários para qualquer instituição política (tenham o modelo e finalidade que tiverem) como os acima relacionados.
Aspectos conclusivos quanto ao tema do partido de quadros
Aponto que nunca é demais ressaltar que uma instituição política deste modelo depende determinantemente do bom trabalho de seus quadros. Isto nos leva a uma discussão clássica de virtú política, contemporaneamente analisada sob o conceito de qualidade da liderança política. Tanto este tema como o político-técnico não são abrangidos neste estudo, apenas ressalto o reconhecimento de sua importância.
Afirmamos sim, que o mesmo esforço empregado por indivíduos ou segmentos desfavorecidos para obter mobilização (e ascensão social, porque a mobilização não precisa necessariamente ser para cima) são empregados no sentido inverso. Ou seja, várias categorias analíticas são válidas para este tipo de modelo de partido, desde que se leve em conta que o modelo implica um objetivo distinto do abordado pela literatura hegemônica.
Como já afirmamos antes, os temas em ciência política são impostos pelas necessidades e anseios da realidade ao redor dos centros de estudo e pela projeção identitária e as ambições do produtor deste tipo de conhecimento. Assim, vemos este tema como de crescente necessidade num cenário latino-americano e brasileiro de mudança de modelo (neoliberal) e com óbvias e enormes limitações de possibilidades de democracia substantiva pela concorrência eleitoral.
Bibliografia referenciada:
ARCHINOV, Piotr. História do movimento Macknovista: a insurreição dos camponeses da Ucrânia. Lisboa, Cadernos Peninsulares, 1976.
CAPPELLETTI, Angel J. Bakunin y el Socialismo Libertario. México DF, Minerva, 1968
COELHO, Plínio Augusto (org.), Malatesta, escritos revolucionários. São Paulo, Hedra, 2008
COLETIVO LUTA LIBERTÁRIA (org.), Mikhail Bakunin, socialismo e liberdade. São Paulo, Coletivo Editorial LL, 2000
COLETIVO LUTA LIBERTÁRIA (org.), Anarquia & Organização, Nestor Makhno. São Paulo, Coletivo Editorial LL, 2001
COLETIVO LUTA LIBERTÁRIA (org.), Errico Malatesta & Luigi Fabbri: anarco comunismo italiano. São Paulo, Coletivo Editorial LL, 2002
DIELO TROUDA, Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários. Doc. eletrônico, encontrado em: http://www.nestormakhno.info/portuguese/platform/org_plat.htm (postagem original em português em 1997); arquivo consultado em 10 de outubro de 2008
FAG, Federação Anarquista Gaúcha, Carta de Princípios. documento eletrônico, www.vermelhoenegro.org/fag/carta/php (20/09/2006); arquivo consultado em 09 de agosto de 2008
GUÉRIN, Daniel. El Anarquismo. Buenos Aires, Ed. Proyección, 1968
MECHOSO, Juan Carlos. Acción Directa anarquista: una historia de FAU, tomo II, La Fundación 1950-1956. Montevidéu, Editorial Recortes, 2005
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)