27 de junho de 2010, Vila Setembrina dos Farrapos traídos em Ponche Verde; Continente de São Sepé dos Lanceiros Negros pelas costas fuzilados em Porongos; Liga Federal de los Pueblos Libres de Artigas y Valientes. Bruno Lima Rocha
Escrevo este artigo antes do jogo entre Brasil X Chile, a ser realizado às 15.30 (hora de Brasília) de segunda-feira, dia 28 de junho de 2010. Os temas aqui abordados intentam transcender a temporalidade e o debate das quatro linhas. Minha opinião como torcedor e amante do futebol não é relevante. Concentro-me nas relações de poder da economia política do futebol e a mídia corporativa.
O fato
Na semana passada, há exatos sete dias (20 de junho de 2010), o país esfuziante comemorava a surpreendentemente boa exibição da seleção brasileira comandada pelo gaúcho de Ijuí. Momentos após a partida quando o time de Ricardo Teixeira vencera a Costa do Marfim por 3 a 1, dera-se um episódio ímpar no moribundo jornalismo esportivo (transformado em info-entretenimento para baixa cognição) e nas relações entre a mídia oligopolista, em especial pela líder do oligopólio (Organizações Globo, pertencente a família Marinho), e o público consumidor de “notícias” futebolísticas. A situação é de conhecimento mundial, e seu factual resulta num bate boca entre o treinador brasileiro e um repórter e apresenatdor com talento cômico, Alex Escobar, funcionário da TV Globo. Embora o tema já esteja mais que comentado, me sinto na obrigação de reproduzir em parte o que falei no ar (junto aos demais companheiros, Eduardo e Diego) em programa semanal que co-edito e co-produzo na Unisinos FM, 103.3, São Leopoldo/RS. Vamos aos pontos de debate.
Subindo a escada já no último degrau
Carlos Caetano Bledorn Verri atende pela alcunha de Dunga e recebeu uma oportunidade rara sob todos os pontos de vista. Temos de reconhecer que nenhum trabalhador, de ofício algum, seja ele ou ela classista ou arrivista identificado pelo selo de “profissional”, jamais inicia sua trajetória no mundo do trabalho pelo topo e consagração em sua carreira. Nem mesmo os mais críticos contra a marketização, inimigos viscerais da ampliação dos espaços de mercado na sociedade – como este aqui a escrever – vão admitir um neófito dar o primeiro passo a partir do posto máximo imaginável. Dunga, que justiça seja feita mais se parece com o anão zangado, atingiu o topo do mundo sem subir degrau algum. Jamais treinara nem sequer time de futebol de botão (outro patrimônio cultural dos povos brasileiros) e começa a coordenar a seleção mais cultuada do planeta.
A Confederação Brasileira de Futebol é uma entidade privada, supostamente federalista, mas na prática reflete um poder executivo quase imperial de seu presidente. Assim o foi na Era João Havelange (quando ainda havia a CBD), e após o mesmo passara com o almirante Heleno Nunes. Vale observar que este naval fora o “gênio” que forçou o capitão de artilharia do Exército e egresso de sua Escola de Educação Física, Cláudio Coutinho, a deixar o Falcão no Brasil e escalar o volante do São Paulo, Chicão, para a Copa de 1978 na Argentina. Dizem os porões que o volante são paulino era cutuado com um “Deus da Raça” do DOPS. Não me espanta. Seguindo na trajetória da entidade, já como CBF, houve a vexatória dupla de comandantes políticos, Octávio Pinto Guimarães e o então deputado Nabi Abi Chedid; culminando no Reinado de Ricardo Teixeira, o ex-genro (de Havelange). Este operador da Bolsa de Valores, amo e senhor da estrutura máxima do futebol identidade do país, atingiu o poder em 16 de janeiro de 1989.
Já naquele hoje distante primeiro ano à frente da entidade, indicara o ex-preparador físico do Flamengo e recém iniciado treinador de futebol, Sebastião Lazaroni, que recebeu o comando da seleção. Na seqüência, o gênio da CBF queima a carreira de Paulo Roberto Falcão como técnico, colocando-o na fogueira da Copa América do Chile. Neste caso, o de Dunga, o padrão se mantém. Ricardo Teixeira indica alguém com trajetória vencedora dentro das quatro linhas, uma pessoa com a marca da seriedade e empenho no trabalho, mas sem nenhuma experiência prática. Independente de valorarmos ou não o trabalho de Dunga (e me incluo nos críticos), um analista político tem como dever interpretar que fatos assim só ocorrem em organizações quase autocráticas, quando um Executivo “manda prender e manda soltar”, ou “bate, prende e arrebenta”, seguindo apenas os seus próprios critérios. Ou seja, desde que atenda os anseios dos aliados empreendedores econômicos do negócio da bola, o Presidente Imperador faz o que quiser.
Para quem imagina que exagero, basta uma lembrança. Indicar Dunga para a seleção brasileira sem nunca haver treinado nem time de pelada varzeana, é a réplica do padrão do ocorrido na noite anterior da final da Copa do Mundo de 1998 e que resultara na escalação de Ronaldo Nazário fora de toda e qualquer condição de jogo. Posteriormente o fato rendeu, gerando a CPI da Nike e da CBF, cujos relatórios foram velados e o livro escrito por um de seus relatores teve a edição apreendida das livrarias e distribuidoras. A bancada da bola, a cartolagem com mandato federal ou amizades planaltinas, é poderosa. Por estes e outros fatores, seria inimaginável supor que Dunga não tenha (ou tinha) uma boa relação com a diretoria da Confederação em geral e com seu presidente em particular. Este ato, relacionado com o padrão de jogo por ele imposto, mais a pregação da “ideologia da superação” e a abundância de patrocinadores, conforma um cenário perfeito para taxar Dunga e Jorginho de chapas-branca e subordinados.
Não seriam os primeiros tampouco. É o padrão da CBF (como na antiga CBD) e que muito poucos dele discordaram. Um exemplo máximo é o eterno saudoso João Sem Medo Saldanha, alegretense e gaucho sem acento, de outra estirpe, distinta do natural de Ijuí. Ou seja, qualquer pessoa com um mínimo de senso de rebeldia e dignidade, tem razões e motivos para discordar e até antipatizar com Dunga, seus métodos e aliados. O que ninguém esperava era a reação deste treinador para com a emissora líder da TV brasileira.
O entrevero de fundo
Assim como tenho diversos motivos para não suportar o técnico da seleção brasileira (por fatores futebolísticos mais que nada), confesso que me surpreendi com sua reação perante a TV Globo e ao vivo. Explico. Não foi a primeira vez e pelo visto nem será a última situação em que Carlos Caetano colide de fronte com a mídia comercial, oligopolista e corporativa brasileira. No caso dos conglomerados midiáticos nacionais, boa parte de seus funcionários na função de repórteres “apanharam” (na gíria jornalística) em coletivas e demonstraram indignação posterior. O silêncio de sempre vinha da amiga e parceira de Ricardo Teixeira, as Organizações Globo. Não me recordo de um ato de solidariedade desta emissora para com os colegas empregados nas concorrentes. E, grosserias sempre foram manifestadas pela dupla da comissão técnica em posto de comando. Sim, pois além de Dunga, Jorge de Amorim Campos sempre se indigna com as críticas e levanta a voz, repudiando as supostas posturas antipatriotas de coleguinhas da imprensa os atacando.
É preciso tecer algumas considerações:
Ninguém pode ocupar um posto de exposição pública e sentir-se imune às críticas. Assim, quem senta diante de uma roda de repórteres corporativos com um painel de patrocinadores atrás, tem uma previsão de comportamento estudado, trabalhado através de media training e decorando respostas água com açúcar, reforçando o senso comum, condensando idéias de consentimento forçado e ausentando-se de polêmicas. Ao menos nisso, segundo meu ponto de vista, Dunga se porta bem.
Carlos Caetano tem o dever de ouvir opiniões alheias e respeitar todas as formas de críticas. Ao mesmo tempo, não tem nenhuma obrigação de reconhecer um mandato societário da mídia corporativa. Os repórteres falam em nome de suas empresas, seus produtos irão para uma grade montada sobre um modelo de negócios e tudo está entreverado com entretenimento. Já resta pouca ou quase nenhuma vocação de jornalismo como paladino da cidadania na mídia corporativa esportiva brasileira e mundial. A liberdade de imprensa defendida por editores e patrões, é a liberdade de empresa. Quem mais executa a censura são as chefias a mando de anunciantes ou sócios majoritários. Os bastidores do futebol brasileiro revelam um nexo político-financeiro-criminal e até os adolescentes sabem disso. O padrão é o mesmo em poderosas ligas estrangeiras, como a inglesa, onde tem tudo menos capital inglês controlando seus clubes-empresa. Esse é o pano de fundo e é muito mais relevante do que a possível operação pubiana do marido da obispa Caroline Celico, operadora midiático-financeira da “Igreja” Renascer em Cristo no Estado Espanhol, o meio campista Ricardo Izecson dos Santos Leite (Kaká).
Nesse sentido entendo que Dunga está no seu direito, tanto o de reagir como bem quiser (e sentir as conseqüências da ação) diante de provocações de toda ordem. O exercício arbitrário das próprias razões até crime é, mas de peso leve, de tipo crime de honra. Não havendo violência gratuita, ele que reaja como bem entender e que sirva de lição. A gritaria é ampla: “O técnico da seleção não é um modelo de comportamento!”. É verdade; mas a crítica sobre ele se dá na relação de seu temperamento com os anseios de exposição midiática para atender as cotas de patrocínio e a figura de relações públicas que a bola como negócio exige de suas estrelas. Certa vez afirmei serem os boleiros de dimensão internacional uma espécie de commodity que anda, fala e faz besteira com a própria reputação e a alheia. Sob esse ponto de vista, Dunga é um desastre andante e falante. Para mim, nesse item, Carlos Caetano fez um golaço, lavando a alma na peleia simbólica de milhões de brasileiros.
Já da parte da Globo, a irritação tem sua origem na proibição de exclusivas e no fim de privilégios em zonas mistas especiais. Em 2002 a emissora transmitiu a Copa sozinha e no desastre de 2006, teve “concorrência” apenas na TV paga através do Band Sports. Na ocasião, Carlos Caetano era funcionário da família Saad e comentava a Copa da Alemanha para a concorrente da família Marinho. Aprendeu na planície a dureza que é enfrentar uma tropa completa estando em minoria. Deve ter visto poucas e boas também; afinal, estamos na era do jabá eletrônico e das estruturas de poder atravessadas pelo marketing e o comércio de imagens. Sabendo disso, atormentado com as reclamações vindas por cima (entre direções), Dunga se estourou diante da humanidade através das telas de TV.
Além da irritação da TV líder pela perda dos privilégios que sempre tivera, também consta o fato do exagero de treinos fechados. Os repórteres afirmam que assim eles não conseguem produzir “conteúdo” para alimentar as redes. Essa é uma meia verdade. A outra ponta é a captura de imagens das placas dos patrocinadores. Exposição de imagem é a moeda de troca do emprego de dinheiro em troca da estampa das logomarcas nos uniformes de treino e jogo, além das peças publicitárias, utilizadas pelos jogadores da seleção. Sem essa cobertura, Dunga ganha no controle do grupo, mas ao mesmo tempo diminui a satisfação dos aplicadores no seu investimento comum. Por estas duas brigas simultâneas, é do senso comum que o atual treinador tem seus dias contados, tanto diante de uma possível eliminação e mesmo saindo campeão do mundo.
A estrutura de poder do futebol brasileiro passa por quatro patas basilares e não tolera muita divergência. São elas: a geração e venda de imagens (via TV, e recentemente via TV paga, como nos canais Premiere Futebol Clube, pertencente da Globo via cabo e satélite); a negociação de direitos econômicos de jogadores (onde operam investidores e milionários mais reconhecidos, tendo ou não uma empresa laranja à frente, a exemplo da MSI); a negociação de direitos de imagens e publicidade (onde lidera a co-proprietária do futebol nacional, a empresa Traffic de J. Hawilla, patrão de Kleber Leite por exemplo) e; a comandância mais tradicional pela via da cartolagem, como é o caso de Ricardo Teixeira. Nenhuma dessas quatro partes sustenta ou tolera um comportamento independente e autonômico, mesmo que expresse um pensamento conservador e patrioteiro, ainda que tenha a sua imagem vinculada a uma série de patrocinadores de grosso calibre. Uma commodity não pode gerar incerteza no investidor. Dunga gera, e por isso, com o perdão do trocadilho, que ele – ganhando ou perdendo – já era.
Comentário final
Dunga e Jorginho passaram do limite de boa convivência com a mídia corporativa e isto acarreta uma sentença punitiva. Não nos espantemos se estiverem preparando matérias de fôlego, cujas pautas de gaveta já devem inclusive estar prontas, e apontando no lide a fritura do atual técnico da seleção.
Ao mesmo tempo, reafirmo que simpatizar com a atitude de Dunga diante da mídia corporativa não implica uma adesão nem ao seu estilo de jogo (que considero medíocre e medroso) e menos ainda uma defesa de sua permanência no cargo. Isso sim seria misturar futebol com política, elogiando um comportamento rebelde e a partir daí reconhecendo uma suposta expertise como treinador – característica que não reconheço de jeito algum. Podemos e devemos elogiar a conduta diante de um dos poderes de fato do país e não respaldar o desempenho no ofício que exerce. Tal é o caso.
Vejo que o episódio abriu precedente e pode e deve ser repetido sempre que alguém sentir-se acuado diante da indústria da mídia. E, por se tratar de futebol, a incidência e seu efeito didático são imensos. Cabe aos batalhadores da democracia na mídia como dos intérpretes e analistas do oligopólio trabalhar o fato para além do episódico e pontual. Se redescobertas e postas à público, as estruturas do futebol brasileiro são insustentáveis sob nenhum ângulo. Eis um bom momento.
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)