Pablo Gonzalez Casanova, ex-reitor da UNAM e um intelectual mexicano que deveria ser leitura obrigatória para todos os cursos de ciências humanas, sociais e sociais aplicadas da América Latina. Sua lucidez reproduzida em forma de texto possibilita de maneira simples e acessível, a desconstrução dos mitos da implantação de tipos ideais do centro do capitalismo em nosso Continente - Foto:Unam
Pablo Gonzalez Casanova, ex-reitor da UNAM e um intelectual mexicano que deveria ser leitura obrigatória para todos os cursos de ciências humanas, sociais e sociais aplicadas da América Latina. Sua lucidez reproduzida em forma de texto possibilita de maneira simples e acessível, a desconstrução dos mitos da implantação de tipos ideais do centro do capitalismo em nosso Continente
Foto:Unam

23 de setembro de 2010, da Vila Setembrina de farrapos subordinados a latifundiários escravocratas, Bruno Lima Rocha

Introdução deste artigo na série:

Retomamos esta série no intuito de manter atualizada a crítica tanto da economia neoclássica, como para firmar posição de não alinhamento com as opções keynesianas. Entendemos que após a queda do Muro de Berlim, do massacre do Levante da Praça da Paz Celestial (Tianamen) e do fato do Capitalismo de Estado ser derrotado em quase todo o planeta, a simples defesa do patrimônio público, mesmo que em sua forma estatal, ganhou ares de resistência global. Hoje, é impossível para alguém minimamente preocupado com a distribuição de riquezas e a soberania popular, tentar defender algumas posições de tipo privatista ou de economia mista ou mesmo de novo tipo legal – a saber – utilizando-se da farsa de pessoas jurídicas criadas no pós-Consenso de Washington. No caso brasileiro, isto se refere às famigeradas figuras jurídicas da PPPs – Parcerias Público Privadas, como também as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e, por fim, à última onda privatizante do Ministério da Saúde, na criação de Fundações Privadas de Interesse Público.

Não vemos estas novas pessoas jurídicas como a publicização de parcelas do Estado capitalista para a sociedade organizada, mas sim o emprego de novas modalidades de pessoas jurídicas empresariais, desonerando o caixa do Estado e podendo repassar de forma direta ou indireta as receitas advindas com a sobrecarga de impostos direto para cofres de tipo privado ou semi-privado. Se há alguma forma de tornar mais público o Estado capitalista brasileiro, esta se encontra nos eixos de luta dentro das defesas dos direitos adquiridos, como a base legal do Sistema Único de Saúde (SUS), na Autonomia Universitária, na Lei que rege o Conselho Comunidade Escola e outras do gênero. Nestes casos, o quesito de participação direta torna-se fundamental e cabe às Fazendas dos três níveis de governo implicados o repasse de divisas para a autogestão construída a partir de uma parcela da população organizada.

Como se pode ver, desenvolvemos aqui os argumentos dentro das lutas imediatas e das aproximações teóricas com este problema. Reconhecemos que o debate do Estado e da democracia aqui presente se situa por dentro dos parâmetros das disputas dentro das concepções da economia capitalista, em especial nos embates diretos entre a economia política não-crítica (desenvolvimentismo) X neoclássicos (neoliberais, neoinstitucionalistas e outras derivações). O aporte aqui ainda é quase que somente o de crítica, porque a contribuição ao pensamento econômico atual, de matriz distributivista e defendendo as liberdades políticas, ainda não foi aqui devidamente desenvolvida. Isto acontecerá, mas antes precisamos afiar a crítica ao neoliberalismo, seus nefastos efeitos e a defesa imediata de postos de trabalho e luta contra toda forma de privatização. Por dentro do serviço público, é possível aumentar o poder do povo organizado através de organizações sindicais e de usuários. Por dentro do sistema privatizado, a única forma é a coletivização (no longo prazo) e a encampação no curto. Vamos às críticas.

As duas vitórias políticas do neoliberalismo no centro do sistema capitalista

Nesta série, não nos centramos nos estudos dos Estados do chamado Socialismo Real (ou de Capitalismo de Estado, regimes politicamente fechados, ditaduras de inspiração marxista), embora também tenham sido contemporâneos do Pós-Guerra e da Bipolaridade. Para situar o leitor no tempo, o avanço do neoliberalismo se inicia na vitória eleitoral de Margaret Thatcher, do Partido Conservador Inglês, no ano de 1979, e na seguinte vitória de Ronald Reagan, pelo Partido Republicano dos EUA, no ano de 1980.

A relevância destas duas vitórias políticas pode ser compreendida pelo momento vivido na década de ’70 pelos operadores políticos e acadêmicos dos países desenvolvidos do ocidente capitalista. A este respeito, é interessante notar uma passagem de tipo quase didático, produzida por pesquisadores da UFRGS, a saber, Cunha, Ferrari e Caldeira (2007), afirmando que:

A partir dos anos 1970 o “consenso keynesiano” foi quebrado na academia e na política. Inflação e desemprego em alta minaram a confiança em torno da alegada capacidade dos policymakers realizarem, através das políticas fiscal e monetária (especialmente a primeira), a sintonia fina dos ajustes macroeconômicos. Para as novas gerações de acadêmicos não existia mais o fantasma do esfacelamento da sociedade pelas forças indomáveis dos mercados livres.

Ainda segundo Cunha, Ferrari e Caldeira (2007), “as idéias do mundo pré-keynesiano haviam apenas hibernado”. A vitória do refluxo conservador assinalado por Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (1979) assegurara dentro do Ocidente desenvolvido a vitória do sistema de idéias marcado por um liberalismo que se reorganizara após a 2ª Guerra. Este novo consenso macroeconômico tinha base na teoria das expectativas racionais (a panacéia de maximizar ganhos e minimizar perdas, individualizando todo objeto de análise) e “na idéia de que a política macroeconômica ativa seria redundante, porque estava sujeita a antecipação por parte dos agentes econômicos”. (id)

O marco de comparação na formulação de Estado, dá-se entre o Estado Neoliberal e o de Bem-estar, e no caso do subcontinente latino-americano, especificamente a sua versão Nacional-Desenvolvimentista. Diante desse enunciado, comparemos pois os desenhos e atribuições que são fruto de fatores diversos (fora da relação causal). O período de tempo do Estado Neoliberal latino-americano é o das décadas de 1990 e 2000, antes do advento dos novos governos nacionais e intervencionistas. É interessante observar os efeitos políticos e societários, a partir do receituário aplicado na década de ’90 na América Latina, encontrados de forma generalizada no artigo do professor paraguaio Victor Barone (1998), segundo o autor:

Os processos de fragmentação social avançam e consolida-se o desemprego estrutural, que converte aos trabalhadores em informais, auto-empregados e lumpen. As cidades e os campos povoam-se de favelas de emergência, e as sociedades se polarizam entre muito ricos e muito pobres, liquidando paulatinamente a classe média. Os efeitos do neoliberalismo são similares aos vividos pelos agricultores e a pequena manufatura domiciliária nos albores do capitalismo temporão, que viram como o emergente mercado capitalista, exigia a intervenção do Estado Vitoriano, para converter aos camponeses deslocados de suas terras e aos trabalhadores deslocados, em criminosos graças à "lei de vagância" que os enviava às "Casas de Trabalho (“WorkHouse") a produzir gratuitamente o fundo de reprodução para o nascente capital.”

O início de uma contra-hegemonia na América Latina em relação ao domínio neoliberal teria como marco o governo de Hugo Chávez (1998) – marcado por duas etapas e disputas entre oficialistas e bolivarianos mais à esquerda – acentuando este perfil anti-neoliberal após a derrota do intento de Golpe de abril de 2002. O avanço das propostas de regulação social através de intervenção estatal macro-econômica também é parte do advento das eleições de esquerdas na América Latina. Os debates a respeito do populismo, neopopulismo e populismo econômico a seguir se discutem.

Premissas de Análise na relação entre os limites democráticos e o desenho de Estado

Como já vem sendo afirmado em trabalhos anteriores, a posição do pesquisador-autor é vista por nós como elemento central na produção do conhecimento. Seguindo uma tradição de análise multicausal, aprofunda o tema e assume uma perspectiva renovada a forma de análise proposta pelo professor mexicano Pablo González Casanova (1967) em sua obra “A Democracia no México”. O autor parte de um ponto de vista que recusa a comparação entre tipos ideais de desenvolvimento econômico nos países centrais e as supostas “anomalias” ocorridas nos países latino-americanos.

Casanova afirma que estas comparações têm “função programática, utópica e ritual” (1967, p.9) e prevê a tarefa urgente de confrontar os modelos jurídicos ortodoxos e oficiais com a realidade (p.9). Assim, com base nas observações formulamos expomos o seguinte modelo de análise (Casanova p.8):

I – a relação da estrutura política formal – os modelos teóricos e jurídicos de governo – com a estrutura real de poder;

II – a relação do poder nacional – a Nação-Estado – com a estrutura internacional;

III – a relação da estrutura do poder com a estrutura social, com os grupos macrossociológicos com os estratos, com as classes.

Reforçamos a idéia de que os modelos de Estado e as formas de desenvolvimento econômico e democrático aplicados na América Latina não são “anômalos” perante as democracias do ocidente central. Assim, a utilização dos modelos de Estado aplicado no debate sobre as democracias realmente existentes, encontra no cenário latino-americano sempre uma reinvenção e readequação dos modelos de tipos-ideais.

Para entrar na origem do debate, vale observar a comparação de propostas e funcionamento do Estado capitalista segundo as críticas de Adam Przeworski (1995) para a visão keynesiana e liberal. Vale ressaltar o que Przeworski afirma que “o que há de novo na ideologia (neo)liberal é o papel dominante desempenhado pela teoria econômica de cunho técnico” (p.241). Assim, podemos afirmar a dificuldade de analisar o Estado se partirmos dos conceitos hegemônicos influenciados pela “ciência econômica de cunho liberal”. É comum afirmar a colonização do saber econômico sobre os demais. Fruto desta colonização, segundo o próprio Przeworski, se aplica de forma generalizada a partir do final da década de 1970. Isto advém com a “teoria das expectativas racionais” (também conhecida como das escolhas “racionais” somada ao individualismo metodológico) isolando o agente e dando-lhe um grau de autonomia superior às contingências e cenário onde este se encontra. Przeworski ressalta a capacidade de universalização da economia e sua forma de “colonizar” e subordinar outros saberes:

Para o autor: “As teorias econômicas são racionalizações de interesses políticos de classes e grupos conflitantes, e como tal devem ser tratadas. Por trás de alternativas econômicas espreitam visões da sociedade, modelos de cultura e investidas em direção ao poder. Projetos econômicos implicam projetos políticos e sociais.” (Pzeworski, 1995, p. 243). Dito isso, expomos os seguintes modelos, de acordo com o autor citado acima.

Estado Keynesiano (Bem estar Social)

Este modelo surge como uma saída da crise dos anos 1920, como medida de solução para o momento posterior ao Crack de 1929 e é aplicado em larga escala no Pós-Guerra. Tem uma de suas bases num acordo pactuado no compromisso entre classes (obs. nossa: advindo daí o peso do trabalhismo, do socialismo outrora reformista e dos PCs de linha Moscou, com ênfase no eurocomunismo). Nos países centrais este modelo de Estado funcionara sob regime de democracia concorrencial. O compromisso entre classes e o poder de barganha vinda da mobilização e do poderio eleitoral da classe trabalhadora formal permitira a alta taxa impositiva como forma de funcionamento de redes de assistência e previdência social. Houve assim uma conciliação da propriedade privada com a gestão democrática da economia (obs nossa: podemos afirmar, uma gestão de preços solidários e salário social, mas sem democratizar, ou horizontalizar as relações de trabalho). E, neste contexto o funcionalismo estatal (altamente sindicalizado) tem forte papel de executora de políticas públicas. O mesmo se dá com a intervenção de empresas estatais gerando bens de produção e infra-estrutura básica do país. Para este modelo de sociedade era fundamental a busca do pleno emprego e a presença de fortes partidos social-democratas representando a força de trabalho (podemos incluir, neste bojo, a partidos reformistas, como os PCs francês, italiano, ou mesmo os de democratização tardia, como os partidos comunistas outrora de linha moscovita, como o português, espanhol e o grego).

Estado NeoLiberal

A aplicação desse modelo tem como justificativa e força motriz a saída para a crise fiscal do final dos anos 1970 (obs nossa: vale observar que este é o termo consagrado pela direita para a quebra do Estado de Bem-Estar; compreendemos que a crise fiscal também é fruto da pressão do capital no intuito de liberar suas forças, descomprometendo-se dos pesados encargos sociais e da carga impositiva). Sua implantação significa a quebra do compromisso do pacto de classes nos países centrais. O modelo neoliberal, além de quebrar o pacto entre classes, subordina as decisões estatais aos parâmetros técnicos (ideológicos; obs. nossa: na verdade axiomas doutrinários primários, quase em sentido de ideologia pura, mas devidamente matematizados, criando jargão e linguagem própria), reconvertendo a tecnocracia de Estado em operadores de políticas dos grandes capitais. Uma das medidas padrões dessa tecnocracia em controle de postos-chave para as economias dos países centrais que adotaram este modelo foi baixar a taxa impositiva e liberar maior circulação de capitais flutuantes (obs. nossa: agindo em conformidade com seus próprios paradigmas incorporados na academia e nas escolas de governo. Este movimento também incidiu na tendência à fusão de empresas, gerando maior concentração, criando ou reforçando os oligopólios, por vezes até assegurando postos de monopólios e aumentando a financeirização da economia. O aumento do peso gravitacional dos agentes financeiros e concentradores na economia, além de uma tecnocracia econômica de confiança desses capitais, leva ao constrangimento dos programas partidários, cedendo às pressões do contingenciamento global. Esta posição garante a tendência de particularizar os interesses gerais e generalizar as metas “inexoráveis”, criando assim uma idéia de “inevitabilidade” de execução de determinadas políticas econômicas padronizadas (obs. nossa: criando uma linha de pensamento como destino manifesto, atingindo o que críticos latino-americanos chamam de hiper-estruturalismo neoliberal). Assim, a balança pende para que as relações sejam mais dependentes das instituições privadas ao invés das instituições políticas.

Linhas conclusivas

Podemos concluir, desde um ponto de vista de defesa da democracia direta e do poder do povo (anti-estatista), que ambas as formas de Estado narradas são vistas hoje como uma relação binária de fatos consumados. É óbvio que a forma do Estado capitalista que não privatize, garantidora de serviços públicos e sem uma base normativa clientelista, de prebendas, patrimonialista e fisiológica, é muito mais salutar e provê uma melhor forma de vida para a população do que a selvageria anti-societária do neoliberalismo. Ao mesmo tempo, quando os movimentos populares abandonam projetos de poder para aderir a governos de turno ou abrem mão da estratégia finalista para uma tática “salvadora” de momento, terminamos por nos contentar com o mal menor e as reivindicações não chegam sequer a ser reformistas. Na atualidade deste texto, tal tipo de pensamento-ação vem operando como “melhorismo” dentro dos mesmos moldes, a exemplo do Brasil atual. A regulação social é uma necessidade e a luta contra a ampliação de espaços de mercado no fazer da coisa pública é uma pauta de urgência. Mas, não se pode confundir uma bandeira de luta imediata com os projetos de longo prazo. Estes são somente e tão somente consolidáveis da democracia política e de massas (direta), a exemplo das conquistas da APPO e da Outra Campanha, ambos no México contemporâneo.

Bibligrafia Referenciada:

BARONE, Víctor. Globalización y Neoliberalismo. Elementos de una crítica. En publicación: Globalización y Neoliberalismo. Elementos de una crítica. BASE-IS, BASE Investigaciones Sociales, Asunción, Central, Paraguay 1998. Documento eletrônico em http://sala.clacso.org.ar/gsdl/cgi-bin/library?e; arquivo consultado em 08 de junho de 2008.

CASANOVA, Pablo González. A Democracia no México. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.

CUNHA, André Moreira, FERRARI, Andrés, CALDEIRA, Mirelli Malaguti. A Argentina e o novo desenvolvimentismo. www.anpec.org.br/encontro2007/artigos/A07A036.pdf . Arquivo consultado em 08 de agosto de 2008.

PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social-Democracia. São Paulo, Cia. das Letras, 1995.

Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

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