20 de outubro de 2010, Rio de Janeiro, Fábio López López
No ultimo documentário de Michael Moore “Capitalismo: uma história de amor”, o talentoso diretor e roteirista denuncia que o sistema financeiro estadunidense não apenas provocou, mas lucrou bilhões de dólares com a crise das subprimes nos EUA. O documentário, no entanto, por ter outro foco, faz a denuncia, mas não deixa claro como isso ocorreu. Saber como as instituições financeiras provocaram o colapso no mercado imobiliário não chega a ser difícil, bastava para isso um pouco de informação e conhecimento de mercado financeiro. Mas, nunca ficou esclarecido como estas instituições se beneficiaram com a crise. No dia 16 de abril, no entanto, recebemos a notícia de que o “SEC” (Securities and Exchange Commission, equivalente a CVM da terra de Obama) está denunciando a Goldman Sachs por fraude civil. Então, a última peça do quebra-cabeça foi encontrada.
Como entender o que ocorreu exige certo conhecimento de mercado financeiro, o que nem sempre é fácil de ser compreendido, resolvi tentar mostrar de forma simples a jogada dos “players” deste mercado que trouxeram grandes prejuízos para a economia global. Infelizmente, não dá para navegar neste assunto sem dar um exemplo numérico – então peço desculpas antecipadas aos que detestam os números.
Comecemos pelo começo. Qual era o grande negócio que até o renomado Allan Greenspan (ex-presidente do FED), e outros notáveis, faziam? Hipotecavam seus imóveis, recebiam o dinheiro para fazerem o que bem entendessem (sendo isso necessário ou não) e voltavam a pagar prestações imobiliárias, modalidade de financiamento relativamente barato, uma vez que conta com a garantia do imóvel. Mas a vantagem não era apenas essa. Nos EUA o gasto com juros para compra de imóvel pode ser abatido do imposto de renda. Como as tabelas de financiamento bancário privilegiam nos primeiros anos de financiamento o pagamento dos juros em cada parcela em detrimento da amortização do principal, no início do financiamento – se olhamos a renda anual do devedor – o pagamento destas prestações acabava saindo bastante barata. Do ponto de vista financeiro um grande negócio. Como todos queriam se beneficiar desta facilidade existia outra possibilidade, o cidadão interessado não precisava sequer ter um imóvel quitado, ele podia, simplesmente, refinanciar seu saldo devedor. O que pode ser um belo negócio se os imóveis estiverem se valorizando.
Entendida a motivação que levou a criação da bolha, agora vamos descrever como ela se desenvolveu. Espera-se que uma instituição financeira seja administrada com responsabilidade, logo, se a mesma concede um empréstimo, a expectativa é que tenha se certificado das condições de pagamento do devedor. Afinal, mesmo que o financiamento imobiliário tenha um ativo real como garantia, o negócio da instituição não é a compra e venda de imóveis, mas o juro que auferirá da operação financeira. A coisa funcionava assim antigamente, o banco financiava o cidadão e via seu retorno no longo prazo – é para isso que existe agente financeiro no capitalismo, ou não? Pois é, isso era no tempo da vovozinha. Atualmente as instituições financeiras têm a possibilidade de realizar seus lucros imediatamente. Basta vender estes títulos de dívida no mercado.
Então vamos às contas. Imagine que um estadunidense tenha uma casa de US$ 100 mil e a hipoteque por este valor. Para simplificar nossos cálculos – pois sei que nem todo mundo entende de matemática financeira – vamos fingir que a coisa ocorra nos seguintes termos: financiamento de 10 anos pagando 10% de juro ao ano sobre o valor do principal (100 mil). Desta forma, o devedor pagaria US$ 10 mil dólares ao ano. Ao final de 10 anos espera-se que o devedor tenha pagado os 100 mil relativos ao empréstimo mais 100 mil (10 mil X 10 anos) relativo aos serviços da dívida. Logo o devedor assina uma “promissória” de US$ 200 mil. Lógico que o lucro efetivo do banco não seria US$ 100 mil, pois temos que considerar a inflação, as despesas administrativas…, mas convenhamos, para a realidade do mercado financeiro dos EUA de juros baixos, isso daria um belo ganho para o banco ao final do período.
Mas por estratégia financeira, esta instituição preferiu realizar imediatamente seu lucro e recuperar seu “caixa”. Como ele pode fazer isso? Simples, emitindo títulos lastreados nas promissórias dos devedores. Imaginemos que nosso banco tenha feito esse mesmo empréstimo para 100 pessoas. Então US$ 200 mil para 100 devedores, temos US$ 20 milhões em promissórias. O banco Goldman Sachs foi ao mercado e ofereceu US$ 20 milhões em títulos lastreados pelas promissórias, que por sua vez estavam garantidos pelos imóveis dos devedores. Negócio garantido certo? Mas para haver negócio, quem adquire o título, quer ganhar algo. Afinal, qual a graça de pagar hoje 20 milhões para um banco, se eu só vou ver estes 20 milhões daqui a 10 anos. Para que o negócio se concretize o banco oferece uma taxa de desconto, a princípio 20%, mas o mercado fica desconfiado, barganha e só absorve estes títulos com 30% de desconto do valor de face. Ou seja, o mercado pagou US$ 14 milhões por títulos que têm valor de face de US$ 20 milhões. O que corresponde dizer que se quem comprou os títulos hoje, ao final de 10 anos terá um ganho de US$ 6 milhões. É amigo, mercado financeiro é isso, o mais bobinho acende cigarro no raio! Achou esta jogada boa? Então veja o banco: ele desembolsou R$ 10 milhões (US$ 100 mil emprestados para 100 pessoas) e ao vender os títulos levou US$ 14 milhões para casa! Sendo assim, quase que instantaneamente o Goldman Sachs embolsou R$ 4 milhões.
Bom, como o banco já conseguiu recuperar seu investimento e realizar o lucro, ele pode partir para novos negócios. Mas agora não tem mais gente tão segura para emprestar… Então o banco começa a emprestar para cidadãos cuja capacidade de pagamento talvez não seja tão boa. Mas como o banco consegue recuperar imediatamente seu investimento através da emissão de títulos de dívidas lastreados pelos papagaios assinados pelos devedores, ele não corre riscos. Na verdade, ele transfere este risco para aqueles que compram os títulos de dívida. Vejam bem, mesmo que a dívida seja lastreada pelos imóveis, o que realmente garante o valor da dívida é o pagamento integral dos empréstimos. Ou seja, as promissórias só valem R$ 20 milhões se todos os devedores pagarem integralmente suas dívidas. Caso, isso não ocorra, a execução de todos os imóveis arrecadaria no máximo US$ 10 milhões (100 casas X US$ 100 mil) – lembrando que se pagou 14 milhões pelos títulos.
Como o banco passou a fazer empréstimos para devedores cujo risco de inadimplência é maior, o mesmo irá cobrar uma taxa de juros maior para estes empréstimos (é isso aí, menos capacidade de pagar, mais juros… é para f… o cara mesmo), o que poderá significar taxas de descontos mais atraentes para os mercados absorverem os novos títulos que serão emitidos. Digamos que o acréscimo dos juros das dívidas tenha sido integralmente absorvido pela taxa de desconto dos títulos oferecidos pelo agente financeiro. Neste caso, o pobrezinho terá ganhado apenas mais US$ 4 milhõezinhos – com isso chegamos a 8 milhões, molinho. Este ciclo pode se repetir muitas vezes até que boa parte da nação fique pendurada nesta modalidade de empréstimo.
Até aí nenhuma novidade, isso é coisa de menino. Mas se o que falamos até o momento lhe foi muito esclarecedor, vou lhe dar, de graça, a orientação financeira de sua vida! Continua na poupança, porque você não entende nada do mercado financeiro. A parte boa vem agora, “gente grande” atua é no mercado futuro com derivativos fazendo hedge. Entendeu espertão? Já sabemos como os bancos lucraram milhões fazendo a bolha imobiliária, mas ainda não deu para descobrir como eles lucram com o estouro da bolha. Para entendemos isso, vai ser indispensável falarmos do mercado de derivativos. O que é um derivativo? É um negócio que deriva de um ativo real (ação, imóvel, moeda, títulos…). Então vamos falar da operação mais comum no mercado de derivativos com um exemplo. Digamos que uma grande empresa brasileira encomende um navio no exterior. Este navio demorará 2 anos para ficar pronto. Para o próximo ano, esta empresa terá que pagar duas parcelas de US$ 50 milhões de dólares, a primeira em 30 de maio e a outra 30 de novembro. Esta empresa fecha seu orçamento no ano anterior, prevendo desta despesa. Quando fez este orçamento o dólar estava a R$ 1,80, mas o orçamento foi feito com um dólar a R$ 1,90. O que esta empresa pode fazer? Primeiro, pegar o dinheiro e ir ao mercado e comprar os dólares que precisa, fazendo o desembolso imediatamente e entesourando o recurso (pode mantê-lo aplicado no exterior). Mas digamos que o setor financeiro da empresa não ache interessante esta estratégia, recomenda a empresa comprar os dólares apenas perto do vencimento das parcelas. Mas com isso temos um problema adicional, o dólar tem o risco de estar com uma cotação superior a R$ 1,90 no dia em que a empresa for ao mercado para comprar o ativo. Neste caso a empresa pode fazer um hedge. Ou seja, vai ao mercado futuro e faz uma opção de compra de dólar para o período que precisa, cotando a moeda a R$1,90. Lógico, o negócio só se concretiza se a empresa encontrar no mercado alguém faça a opção de venda da moeda com o mesmo volume e valor proposto. Caso o negócio se concretize, o que temos configurado: a empresa entra no mercado, se protegendo de uma alta da cotação do dólar (na verdade sua aposta é que o dólar estará a mais de R$ 1,90, na ultima semana de maio), se isso acontecer, a empresa terá um ganho, pois deixará de desembolsar o valor correspondente da diferença. Por outro lado, temos um especulador apostando que o dólar estará com cotação inferior ao valor contratado no dia do vencimento da opção. Assim, ele poderia comprar os dólares, digamos a R$ 1,80 e vender no mesmo dia a R$ 1,90 para a empresa.
Agora começamos a entender: o especulador, que “vendeu” a opção, não tem o ativo. Muito menos a empresa que “comprou” a opção o quer daquele com quem fechou o negócio. O que ocorre apenas é a transferência de renda entre os apostadores das diferenças apuradas. Digamos que a empresa tivesse feito a aposta correta e que o valor do dólar no dia da liquidação estivesse a R$ 2,00. Então o especulador terá que dar à empresa a diferença apurada, neste caso R$ 5 milhões (R$ 2,00 – R$ 1,90 = R$ 0,10*50.000.000=R$ 5.000.000). Inteligente… Então a empresa pega o valor que já tinha orçado para a compra dos dólares, soma o que recebeu da operação no mercado de futuro e compra os dólares que precisava sem furar seu orçamento. Até aí nenhum pecado…
Mas o que isso tem a ver com nosso estouro da bolha? Agora podemos chegar lá. A Goldman Sachs, assim como outras, emitiu os títulos de dívida que foram absorvidos pelo mercado. Quando vendeu os títulos ao mercado, disse que os ativos eram seguros, que não havia motivo para ter medo, que eles estavam recebendo uma bela taxa de desconto, que provavelmente estes ativos se valorizariam e poderiam ser revendidos com lucros no mercado secundário etc… Papo de vendedor. Muito bem, este mesmo banco que fez a venda dos ativos, criou um fundo para atuar no mercado futuro. Lá fizeram a seguinte ação, venderam uma opção dos títulos que eles mesmos colocaram no mercado. Voltemos ao exemplo numérico. Lembre-se que o banco conseguiu vender em títulos US$ 14 milhões na primeira rodada. Vamos dizer que estes títulos estivessem divididos em 100 mil cotas, desta forma, cada cota custava US$ 140,00. A Goldman Sachs, por exemplo, fez a opção de venda destes títulos para o ano seguinte a US$ 130,00, mas ela não tinha mais estes títulos. Então o que o banco estava apostando? Que no ano seguinte, estes títulos estariam com o valor inferior a US$ 130,00. E foi o que aconteceu, com o estouro da bolha, estes títulos ficaram bastante depreciados, vamos dizer que o valor do título tenha caído em 70%. Por cada título, o banco levaria US$ 98,00. Se estamos falando de 100 mil títulos… Então o banco levou só nessa mais US$ 9,8 milhões. Se somarmos aos 8 milhões anteriores, então o banco faturou R$ US$ 17,8 milhas!!!!
Bom mas como estourou a bolha? Mais uma informação é relevante, os juros dos financiamentos, ao contrário do que os fiz acreditar no exemplo acima, são flutuantes. Os EUA tiveram um período de juros bastante baixos, depois, por conta dos indícios inflacionários, as autoridades monetárias começaram a majorar as taxas. Isso, somado a baixa capacidade de pagamento dos devedores, recrudesceu a situação, até o momento que muitos estavam com dificuldade de honrar seus compromissos. Assim, os títulos passam a se desvalorizar, pois, na verdade estavam lastreados no pagamento dos devedores. Mesmo que os imóveis, em última análise, possam ser retomados, se este fenômeno ocorre muitas vezes num espaço curto de tempo, teremos muitas casas para serem vendidas para poucos compradores, até porque nenhum banco financia nada em momentos de crise. Resultado, os preços dos imóveis também caem!
Esse é o resultado da desregulamentação do setor financeiro e é a isso que leva a livre iniciativa das forças do mercado! Uns poucos lucram no curtíssimo prazo e o mundo inteiro perde durante anos. O melhor paralelo que até hoje ouvi sobre a regulamentação e a ação do Estado como regulador do sistema capitalista traz o exemplo do homem, a jaula e o leão. Nesta o homem está dentro da jaula e o leão do lado de fora. Apesar de ser ruim estar dentro da jaula é ela que protege o homem do leão faminto. Pois bem, neste paralelo a jaula é a regulamentação do Estado e o leão é o capital. Sem regulamentação Estatal, o homem fica sem a jaula para lhe proteger, então, ser devorado pelo leão será inevitável.
Conhecendo como foram auferidos os ganhos no mercado de derivativos, fica muito difícil de acreditar que tudo que ocorreu não tenha sido arquitetado, inclusive o momento do estouro da bolha. Então podemos dizer: o momento? Não seria melhor estourar depois do governo Bush? Prejudicou-se o McCain! É, mas o governo Bush tinha vários representantes da Goldman Sachs, o que facilitou toda a ajuda que os pobres bancos precisaram depois do estouro da bolha. Já com outro presidente, estes representantes poderiam não estar dentro da máquina do governo.
Fábio López Lopes é economista e autor do livro “Poder e Domínio”.