28 de novembro, de São Leopoldo, Bruno Lima Rocha
Escrevo este texto partindo de duas perspectivas confluentes. Não creio em análise neutra, mas sim de rigor. Portanto, desenvolvo a argumentação tanto como analista quanto alguém diretamente envolvido na área. O trabalho trata do esforço dos brasileiros pela radiodifusão comunitária. Aborda o movimento popular brasileiro mais reprimido na democracia brasileira pós-1985 e também de sua urgente busca por uma proposta comunicacional para sair da encruzilhada paradigmática onde se encontra.
O artigo foi publicado em 2008 no livro Economia Política da Comunicação: estratégias e desafios no capitalismo global, organizado por Valério Cruz Brittos, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Temos como dado geral que nos últimos 20 anos, em média, a cada semana é assassinado um camponês na luta pela terra no Brasil. Ao mesmo tempo, a cada dia, de uma a três rádios comunitárias são fechadas pelo governo de turno. Ainda assim, este setor não conforma um movimento popular poderoso como o fazem os trabalhadores rurais. Tenho como tese que a repressão acostuma à desobediência civil e não à organização popular. Vejamos os porquês ao longo do texto.
Passada uma década da lei reguladora do serviço de radiodifusão comunitária (Lei 9612/98)1 , estas emissoras (de pequeno alcance, controle social e sem fins lucrativos) encontram-se em um momento crucial. A radiodifusão comunitária ainda está em busca de um conceito de comunicação a ser apropriado pelos comunicadores populares. Tal lacuna ocorre por diversos fatores concomitantes, tais como: a reprodução dos padrões de mercado (linguagens, programação, gestão e outorga), o utilitarismo típico da concepção de “mídia de esquerda” e a ausência de massa crítica proveniente dos defensores da democracia na comunicação. O trabalho debate o vazio conceitual convivendo com o paradoxo da apropriação de tecnologia e a criação de um audiovisual integrado e de baixo custo.
Breve retrospectiva da história recente
O chamado movimento pela democratização da comunicação ganhou corpo próprio a partir da década de 1980. Durante o processo constituinte, 1987-1988, criou-se uma Frente Nacional pela Democracia na Comunicação. Anos depois, esta frente se tornou um Foro, com pessoa jurídica e status de ONG participativa (www.fndc.org.br)2 , e termina por representar um setor desta luta. Isto somado às então chamadas rádios livres, gerou o caldo de cultura crítica dentro da esquerda brasileira.
A tentativa então era aprovar o dispositivo constitucional que aponta à instalação de três sistemas de comunicação no país. Consta no Capítulo 5º, Artigos 220 a 2243 a formatação desta proposta. Um é o sistema privado, marcado pelo oligopólio de 11 famílias, que de fato são seis as que controlam mais de 80% do fluxo de informação e significados em todo Brasil4. Outro seria o sistema estatal, que ainda não tem alcance de todo território nacional e, em termos de televisão, não chega a 10% da população como audiência. E outro, o sistema público não-estatal. Este último está previsto no direito constitucional, mas que na prática vai sendo implantado pelas associações de comunicação comunitária. Não é por acaso que sobre estas associações o Estado aplique a repressão sistemática.
Este projeto constitucional, como é de praxe no país, começa pela lei para depois chegar aos costumes e práticas quotidianas. O mesmo passa com a reforma agrária. A medida está prevista em normas legais desde o ano de 1965, assinado pelo marechal Humberto Castello Branco em 30 de novembro de 19645, primeiro presidente da ditadura militar. Na realidade das formações sociais concretas, uma vez que não há política agrária e tampouco política agrícola, a ocupação produtiva do território vai sendo implantada pela luta dos movimentos camponeses, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O mesmo passa com a luta pela democracia na comunicação, mas com a descomunal diferença que no último caso, as iniciativas são fragmentadas e a estrutura não chega a ter a organicidade necessária.
Voltando às origens do “movimento” de comunicação, a etapa formadora, é justo a de início do retrocesso ideológico nos conceitos mais básicos da esquerda que se posiciona a partir da luta popular. Ou seja, da chegada do neoliberalismo à América Latina. Os primeiros 10 anos foram mais que nada para conformar o setor em si. Isto porque a imprensa comercial saía de um estado de combater a censura ou colaborar com o regime de exceção, para produzir a autocensura e propagar os manuais de redação. Junto com as novas agrupações sociais do tema, na área acadêmica da comunicação, a economia política perde seu lugar aos estudos culturais. Disto decorre, de forma hegemônica no Brasil, que a busca de referentes diferentes, a idéia de diversidade veio junto com o pós-modernismo e a idéia de sociedade civil que inclui ao “mercado”.
Majoritariamente, o movimento pela democracia na comunicação ganhou o ônus conceitual típico deste momento. A formação do FNDC, bem como todas suas fraturas e instituições derivadas (Intervozes6, por exemplo) é formado por gente com formação universitária justo no momento que as idéias de combate e mudança social começam a cair no descrédito. Não somente é um tempo cronológico afim como de convergência de mentalidades. Poderia narrar aqui uma série de acontecimentos ou medidas políticas que marcam esse período. Seguramente seria cansativo e impróprio. Seguimos com o debate conceitual.
No final dos anos 80, especialmente durante a primeira parte da década de 90, no Brasil, surgem entidades representativas do tema. Uma delas, a Executiva Nacional de Estudante de Comunicação (Enecos7), nasceu superando uma crise de ausência e representatividade. Mas que, a partir dos anos 1990 e 1991, ganha identidade e estrutura. Como para o exercício da profissão de jornalista bem como publicitário é exigido o grau superior, a Enecos é o canal de entrada e formação política de boa parte da militância mais técnica da área.
Outra instituição fundamental é a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj8), onde o grupo que funda o FNDC e inaugura o discurso contra o oligopólio no Brasil, também se encontra na diretora nacional deste grêmio. É notável como a defesa da abertura de mais postos de trabalho criou uma armadilha conceitual, impedindo a idéia de democratizar o controle dos meios de comunicação por parte das maiorias. Nestes mais de 15 anos, as mudanças impostas pela adoção de novas tecnologias, o surgimento de outros meios somaram-se com o encolhimento do grêmio em local do trabalho.
Uma situação estruturante da mentalidade e prática política convém ressaltar. Por ironia da história, o momento narrado – metade dos anos 90 – coincide com a escassez do emprego formal nas redações jornalísticas e a abundância das assessorias. Incluem-se nestas as assessorias de comunicação sindicais, prefeituras, órgãos da administração direta e mandatos parlamentares. A crise do jornalismo atinge a jornalistas em crise e a crítica ácida às indústrias de signos midiáticos. Neste vazio conceitual, ficou hibernando o conceito de Mídia de Esquerda X Utilitarismo de “esquerda”. Não há guerra de posições ideológicas nem formação de bloco histórico que resista ao pragmatismo político.
Ano após ano as faculdades brasileiras despejam milhares de trabalhadores em comunicação num mercado restritivo. São cada vez mais novos, com menos experiência política e trazem com eles uma mentalidade, em média, que se volta para o mercado. A Fenaj se torna um grêmio fora das redações, com maioria de assessores de imprensa e uma ameaça de desemprego permanente.
É quase “natural” que o grupo diretivo se ponha na defensiva. Só não é mais natural, porque nada é “natural” na política. Assim, a presença de ONGs e instituições do terceiro setor quase terminam por substituir a idéia de movimento popular. Portanto, a dianteira nesta luta é levada a cabo por profissionais e acadêmicos, que em sua maioria não estão condicionados por uma base organizada. Mais que determinismos de origem de classe, temos que observar o problema das posições, mentalidades políticas e uma forma de mobilização que passa longe das ruas e olha à ação de massas como algo longínquo ou raro.
Nosso corte temporário está na década passada, justo no primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Junto com a estabilidade monetária, temos um recuo dos setores populares mais tradicionais. A institucionalização de uns caminha lado a lado com o isolamento de novos setores, grêmios informais ou sujeitos sociais desorganizados. Neste plano entra em cena, quase 10 anos após o surgimento dos grupos de pressão e lobbies na Assembléia Constituinte, o elemento militante e popular.
Como já dissemos, as primeiras emissoras têm perfil de rádios livres, com caráter mais experimental. Na segunda metade dos anos 90, um caldo de cultura crítico olha à comunicação como uma necessidade e um direito, inclusive previsto na Constituição. Há uma confusão de conceitos e prioridades, em nosso ver algo que hoje se torna um labirinto e que vem sendo abordado tanto na academia como na instância do movimento. Desemprego, mesmo assim, o grau inicial de organicidade é atingido. No ano de 1996 nasce uma instituição social com a idéia de representação legal e social das emissoras comunitárias de rádio. Tem o nome de Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço9) e tenta forçar ao governo Cardoso a assinar uma lei que respalde esta forma de comunicação social.
Uma década passou desde quando se forma a base constitucional pelo sistema público não-estatal de comunicação social10. Na ponta desta demanda, com perfil muito diferente do Sindicato dos Jornalistas e do grêmio de estudantes, surgem iniciativas populares quase incontroláveis. Um ex-militante político dos anos ‘60, Sérgio Motta, ocupando o cargo de Ministro das Comunicações, do grupo de confiança de Cardoso e dos capitais de São Paulo, assinou no ano de 1998 a Lei 9612/98. Esta, em tese, regula um modelo de rádios comunitárias de baixa potência. Os problemas desta lei e suas conseqüências são outro tema permanente de debate e intento de superação do marco legal.
O fato é que a partir desta base legal, pouco regulada, o que era quase fora de controle se torna totalmente fora de controle, tanto do Estado como das forças sociais organizadas. A resposta do Estado representado pelos governos de turno é fechar pelo mínimo uma rádio por dia. Outra ausência de resposta é uma definição brasileira de radiodifusão comunitária. A formação do “movimento”, observada acima, nos remetem a um vazio de massa crítica com perfil militante. Reconhecemos que a montagem do sistema público não-estatal está nascendo a fórceps, das entranhas do próprio povo.
O custo desse nascimento é deveras alto para o projeto político. Para explicá-lo, temos de ir ao encontro do conceito de ausência de vazio político, de referência jornalística e de pensamento comunicacional. O que vemos dentro das rádios comunitárias é a reprodução das mentalidades do radialismo comercial. Pela falta de massa crítica e a não intermediação organizada das conquistas coletivas. Isto gera uma postura defensiva, um excesso de peso no nível jurídico do embate e na intermediação parlamentar.
No próximo tópico, propomos um debate, estabelecendo um diálogo, a nosso ver profícuo, entre a formação dos radialistas comunitários, o subcampo da Economia Política da Comunicação e um estudo comparativo entre o rádio e a política na Argentina e no Brasil. A intenção desse artigo é fornecer um início de marco teórico apropriado tanto para a formação da comunicação comunitária como para as respectivas pesquisas na área.
Propondo um marco teórico de debate
Propomos o início deste debate de pilares teóricos partindo do contexto latino-americano após o ano 2000. A partir deste ano, podemos afirmar que a mediatização e a pauta da comunicação entra de vez no debate político de nossos países. E, embora o fenômeno da radiodifusão partindo da Lei 9612/98 tenha vários traços singulares no que diz respeito aos constrangimentos estruturais que o campo comunicacional sofre a comunicação social brasileira não é exceção no Continente. Vale observar a análise de Dênis de Moraes a respeito destes limites estruturais:
Os problemas históricos de desigualdade e exclusão na América Latina refletem-se nos campos da comunicação e da cultura de modo semelhante e perverso: um pequeno número de megagrupos, quase sempre em alianças com conglomerados transnacionais, controla, de maneira oligopólica, expressiva parcela da produção e da circulação de dados, sons e imagens. Os titãs buscam rentabilidade a qualquer preço, beneficiando-se das desregulamentações neoliberais, das omissões dos poderes públicos e dos desníveis tecnológicos entre países ricos e periféricos.11
Gostaria de agregar a esta observação o fato de que os chamados titãs terminam por operar como partidos políticos. Por vezes, este perfil se escancara, como no governo de Mesa, empresário midiático que veio a assumir o poder Executivo na Bolívia após a derrubada de Sanchez de Losada através de um levante popular conhecido como Guerra do Gás. O controle dos meios, a produção de bens simbólicos, o fluxo informativo está intrinsecamente vinculado ao exercício do poder político e a posição de domínio nas sociedades latino-americanas. Não seria possível o modo de dominação aplicado sobre as maiorias latino-americanas sem a presença operante dos meios de comunicação social.
O modus operandi é atravessado pelo interesse mercantil, como apropriadamente aponta Dênis de Moraes no comentário que segue:
Em função de seus interesses mercantis, boa parte da produção simbólica não leva na devida conta identidades, tradições e anseios socioculturais dos povos. O que prevalece, geralmente, são apelos convulsivos ao consumo, elevado à condição de instância máxima de organização societária.12
Agrego a esta pretensão generalizante da dimensão do consumo uma série de fatores, tais como: a desqualificação do discurso anti-hegemônico; a folclorização das narrativas e estéticas populares, aplicando uma versão continental do “orientalismo”; o deslocamento do foco e do centro da atenção, pouco ou nada refletindo o continente latino-americano; a intermediação discursiva perpassada pelos pontos de vista e política externa dos Estados Unidos, subsumindo as visões nacionais às posições do Império (vide cobertura do conflito Colômbia-Equador); além da prática sistemática e estruturante de ocultar as premissas nos enunciados transmitidos. O conjunto destas práticas e sua capilaridade societária resultam na hegemonia midiática, que se retroalimenta da própria mediatização social. Moraes apropriadamente aponta como fundamenta esta hegemonia:
A hegemonia midiática fundamenta-se na presunção – fabricada ideologicamente – de que os veículos refletem a vontade geral. Tais atributos confeririam aos meios de comunicação uma posição peculiar na sociedade, a ponto de atuar sem freios de contenção.13
É justo no quesito da presunção hegemônica onde entra o papel estratégico da radiodifusão sob controle das entidades de base como fator de contra hegemonia. Antes que nada afirmo que toda hegemonia é uma fabricação ideológica, até porque o mundo das representações não é o espelho da falsa consciência, mas sim um universo específico da construção de sentidos coletivos. Caberia ao movimento popular de comunicação afirmar a vontade política de criar um espaço público midiático das maiorias. Espaço este que, se protagonizado pelas representações simbólicas excluídas ou subalternas pelos “titãs da mídia”, pode ver nos ativistas da contra-hegemonia a intermediação legítima no processo comunicacional. É justo neste ponto quando uma área de estudos vai ao encontro da comunicação popular.
Um dos problemas que observamos na dificuldade de formar um marco de atuação para o movimento de radiodifusão comunitária é justamente seu papel difuso. Considera-se, de modo geral, a causa da democracia na comunicação social como um tema transversal. Como algo que diz respeito a todos os setores de classe e da cidadania como um todo, o tema não contaria com protagonismo e papel preponderante de um setor.
É por discordar profundamente dessa concepção que trago o debate. Entendo que a democracia na comunicação apresenta uma causa para a própria definição de cidadania. Mas, o exercício de um direito se dá a partir do ato em si. Assim, vejo a comunicação social como tendo protagonistas de democratização aqueles que exercem esse direito, mesmo que cometendo a desobediência civil. Já o papel a cumprir por estes agentes protagônicos, conforme vimos no tópico acima carecem de definição política e o marco teórico por onde se desenvolver.
Partindo da lógica da relação emissor-receptor, observamos o óbvio. Por mais inaptos que sejam os comunicadores comunitários, mesmo que somente reproduzindo linguagens comerciais nas emissoras de baixa potência, são estes os homens e mulheres que ocupam o papel de encurtar a distância no processo comunicacional. O indicado, portanto, é observarmos, desde a perspectiva da crítica da economia política das indústrias da comunicação, o estudo do papel da recepção para um conceito de radiodifusão que visa encurtar distâncias e tornar público o processo comunicacional. Esta preocupação vai ao encontro do exposto por Brittos:
Talvez seja o momento de projetar estudos de recepção no âmbito da Economia Política da Comunicação, evidentemente valorizando a função do público no processo comunicacional, de legitimador (inclusive como pagante direto ou indireto) dos bens simbólico-comunicacionais. Mas isso não significa a equiparação das forças da produção e da recepção, sabidamente, relações assimétricas.14
Se adotarmos o conceito para aplicá-lo na formação e no funcionamento de uma rádio de baixa potência e passível de controle social, veremos justamente esta relação. O tipo-ideal de rádio comunitária aponta o público-alvo distante do focado a partir de sua possibilidade de consumo. O que em tese importaria seria a chance real de gerar outro pólo de referência, identidade e consenso a respeito dos temas centrais para a vida em sociedade. Mesmo que todos os programas dessa emissora sejam interativos, abertos a participação e sob controle de entidades de base participando da grade desta rádio, é simplesmente impossível o fim do processo comunicacional.
Vamos supor que em um município hipotético de 10 mil habitantes exista uma emissora comunitária, primeira em audiência, gestão democrática e grade de programação variada. Suponhamos ainda que, hipoteticamente, das 100 entidades de movimento popular, cultural nativista, associações por interesses específicos deste lugar, 80 tenham programas na emissora. Ainda no plano do tipo-ideal de radiodifusão sob controle popular, suponhamos que esta emissora tenha sempre três delegados de cada uma destas entidades por programa, e uma freqüência de ao menos 70 visitantes em média diária nos estúdios da rádio.
Este tipo-ideal improvável teria um grau de participação enorme. Ainda assim, esta emissora contaria com um total de 240 comunicadores e cerca de 2.100 pessoas transitando pelas instalações físicas. Ou seja, a condição assimétrica continua, ainda que com graus desejáveis. Isto porque o processo comunicacional, assim como qualquer outra rotina produtiva, incluindo os processos de participação e decisão popular, necessitam de especialização e delegação coletiva.
Ainda neste sentido, a carga de reprodução conceitual, a difusão de mensagens, a criação de fatos-geradores – como uma palavra de ordem – passa antes que nada pelos comunicadores desta hipotética e participativa emissora. Compreender, aceitar e posicionar-se nesta assimetria, em nosso ver, é algo urgente para as emissoras comunitárias. Não se trata de proclamar algo inexeqüível, como o fim do processo emissor-receptor, mas como o conceito já expressa, a democratização do direito a informação, comunicação e a cultura. Continuando a comparação e a referência, Brittos afirma que:
Ou seja, o receptor é um produtor de sentido limitado, não um co-produtor no mesmo nível das indústrias culturais, que reúnem elementos para que suas mensagens partam de um significado previamente proposto embora haja desvios. As opções do consumidor costumam ser feitas a partir das proposições do produtor, de forma que a própria incorporação dos anseios da demanda, pelas firmas de comunicação, é para processá-los e oferecê-los segundo interesses dessas empresas, estando muito presente a lógica da oferta.15
Seguindo nas analogias entre os estudos de recepção da indústria de comunicação para com a radiodifusão comunitária, reconhece-se que o receptor é um produtor de sentido limitado. Além disso, este mesmo produtor é depositário de memória ancestral, transferida através da oralidade e da socialização primária. Esta memória é permanentemente atacada em sua importância e diluída no universo de signos gerados pelas indústrias de maior escala. Deste modo, a limitação do receptor é compensada por sua característica de reprodutor de micro escala. Embora insignificante para os termos comerciais pensados pela mídia sob controle de acionistas, esta capacidade de transmissão pelo tecido social é de extrema relevância para a difusão comunitária.
O tema do poder econômico também entra na analogia dos estudos de recepção. O pequeno poder aquisitivo que pouco ou nada é levado em conta pela indústria da comunicação controlada por acionistas, é uma das bases da radiodifusão comunitária. A rádio e a produção integrada de audiovisual de baixo custo potencializam os empreendimentos econômicos da região sob cobertura da emissora. Muitas vezes, uma iniciativa de economia dentro da mais plena informalidade, mas com muitos freqüentadores de uma região metropolitana periférica, ganha legitimação anunciando em uma rádio comunitária. No quesito economia e subordinação das indústrias de comunicação, Brittos aponta que:
Tem-se claro que as indústrias culturais subordinam-se aos capitais em concorrência e também a funções de manutenção do sistema, envolvendo, respectivamente, aspectos restritos do enfrentamento das corporações e também da reprodução do capitalismo em sua totalidade.16
Este ponto da analogia abre um interessante debate. Na maioria dos bairros de capitais, municípios de regiões metropolitanas e de cidades pólo, existe uma vasta gama de comércio de lanches rápidos, assim como de outros serviços. Isto gera uma identidade do território17 ancorada na independência em relação aos centros urbanos e as “áreas nobres”. Com a grande oferta de comércio e de serviços, o morador que não trabalhe fora daquele perímetro precisa sair poucas vezes deste local para consumir. Esta característica por si só aumenta a sociabilidade entre os que convivem dentro de um espaço urbano à margem dos grandes fluxos de informação.
Considerando o caráter preditivo do artigo, consideramos a este aumento da sociabilidade como um valor e vemos a micro economia local como um complemento a um desejável subsídio público para a radiodifusão comunitária. Para o reforço no comércio e serviço local, um diferencial pode ser a relação quase orgânica entre os empreendimentos e as emissoras comunitárias. No ramo das artes gráficas, os mapas de bairros e cidades já contam com patrocinadores, assim como a lista local de assinantes. Algo semelhante pode ocorrer de forma sistemática com as emissoras comunitárias e o audiovisual gerado. Isoladamente os apoiadores culturais já estão presentes, mas não se trata de uma prática recorrente voltada para a economia política de um município ou região urbana.
Ressaltamos que a vinculação com a baixa economia só pode se dar de forma independente dos interesses diretos e da mentalidade do comerciante do varejo e de serviços. Do contrário, a norma será o pior dos cenários que hoje se verifica, quando as piores práticas do radialismo comercial se reproduzem de forma ainda menos qualificada do que nas emissoras sob controle de sócios ou acionistas.
É óbvio que a independência editorial está além da vontade política. Passa pelo posicionamento da radiodifusão comunitária como movimento popular, exigindo demandas perante o Estado para financiamento público perante um serviço de interesse cidadão. Como todas as causas e questões nevrálgicas no Brasil, esta conquista passa pelo embate e organização de classe, indo além de grupos do terceiro setor, lobbies e pressões sobre representantes políticos profissionais.
O papel do rádio e a defesa do direito a transmissão por radiofreqüência têm uma importância central para o avanço das identidades populares. Este veículo sempre teve o potencial para cumprir este papel, sendo por diversas vezes instrumentalizado por governo e regimes. E mesmo sob estes controles, o que se verificou foi à manifestação da cultura popular, ainda que emaranhada com o chamado populismo. A professora Dóris Haussen comparando os governos Vargas e Perón destaca que:
Analisando-se a produção cultural do rádio, à época, alguns fatores chamam a atenção. Apesar da cultura “oficial”, promovida pelos órgãos do governo (peronista), a cultura popular desenvolveu-se independentemente; mesmo dentro da cultura “oficial” estava presente o cotidiano. Assim que é quase impossível querer separar-se em “duas” culturas, uma “nacional/populista” e outra “popular”.18
Entendo que as narrativas radiofônicas, em seus distintos formatos, longe de ser arcaicos ou antiquados, podem conformar uma das espinhas dorsais de uma produção audiovisual de baixo custo e ocupando o chamado campo nacional-popular. Um conjunto de gêneros, tanto do radioteatro, radialismo como do radiojornalismo pode ir tecendo o fio condutor invisível de uma programação radiofônica. As emissoras comunitárias estariam assim cumprindo um passo de retomada das produções que a indústria já abandonara em função de interesses mercantis ou da absorção ideológica de seus produtores. Este processo foi narrado por Haussen no rádio AM argentino:
O passo seguinte na evolução das radionovelas argentinas foi a retomada dos temas nacionais por novos escritores de radioteatro […]. O radioteatro já não era só da família classe média típica, mas também o da família dos novos bairros. Neste momento (década de 40) apareceu a problemática das fábricas (do trabalhador).19
A apresentação de problemáticas e situações de tipo povo-cotidiano e a recuperação de personagens é possível mesmo nos dias que correm, quando a rádio via internet e transmissão digital e satelital avançam. Conforme já afirmei em outras partes do artigo, em determinados programas de rádios comunitárias e em algumas emissoras estas produções ocorrem. O que não existe é um esforço sistemático e uma teorização a respeito. Um conjunto de tipos populares, narrativas literárias de vários gêneros e formatos, difusão de cultura nacional e representações locais, historicidade de bairros, pequenas cidades e micro-regiões afastadas das capitais podem gerar o conjunto de produções de signos que conforma uma contra-hegemonia midiática.
Considerações conclusivas
Gostaria de concluir este curto debate apontado neste artigo com uma intencionalidade e reflexão. De todos os setores que defendem a democracia na comunicação, é o das rádios comunitárias operando através do serviço instituído com a Lei 9612/98 o que apresenta a maior capilaridade entre as classes populares. Entendo que não poderia ser diferente. O rádio, como um todo, é o meio de comunicação mais difundido e com o maior número de adeptos. Essa ligação até sentimental com a mídia falada, com a oralidade, incentivou as entidades de base e as classes trabalhadoras a abrir emissoras através dos métodos conhecidos. Os conflitos internos abundam, e as virtudes também. Se a reprodução da mídia e do rádio convencional é freqüente, também é a desobediência civil e o confronto com a política repressiva do Estado.
Mas, tamanha capilaridade e inserção, nossa virtude é da dimensão da dificuldade enfrentada para organizar o setor, que dirá formar uma contra-hegemonia midiática. Isto porque, embora populares, as rádios comunitárias ainda estão longe de serem ferramentas de libertação popular. Falta um modelo e um marco teórico a ser perseguido com afinco. Com a organização modelar de 10% das associações de comunicação comunitárias controladoras de rádios outorgadas já haveria uma enorme rede de rádios e a massa crítica necessária para conformar as bases de um movimento.
A organização destas emissoras do povo já seria uma grande contribuição para a democracia da comunicação no Brasil, incluída esta luta dentro do perfil de movimento popular. A tarefa da busca por um modelo de emissora e um marco teórico adequado é tão urgente quanto o debate sobre o Sistema IBOC de rádio digital, o necessário financiamento público e o novo marco regulatório.
A comunicação social sem dúvida é a portadora e difusora de ideologia. A idéia de sujeito(s) coletivo(s) passa pela mediatização exercida sobre as classes populares pelos meios de comunicação comerciais e monopólicos. Como formar este conjunto de idéias de forma compreensível é outro desafio. A linguagem é portadora da carga conceitual. Sem ela, não há possibilidade de gerar informação, comunicação e cultura entre semelhantes. A busca por linguagens que expresse o potencial de realização que resulte na criação de um Poder Popular é um dos marcos de atuação, tanto das pesquisas acadêmicas orientadas para esse propósito, como do movimento popular da radiodifusão comunitária brasileira.
Notas
1 BRASIL. Lei nº 9.612, de 19 de fevereiro de 1998. Institui o Serviço de Radiodifusão Comunitária e dá outras providências. Casa Civil: Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9612.htm>. Acesso em: 11 de abr. de 2008.
2 FÓRUM NACIONAL PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO. Quem Somos. Disponível em: <http://www.fndc.org.br/internas.php?p=internas&lay_key=5&cont_key=9>. Acesso em: 7 abr. 2008.
3 BRASIL. Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.ancine.gov.br/media/Constituicao_Federal_EC53.pdf>. Acesso em: 5 abr. 2008.
4 FÓRUM NACIONAL PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO. Donos da Mídia. Disponível em: <http://www.fndc.org.br/arquivos/donosdamidia.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2008.
5 BRASIL. Lei 4.504/1964, de 30 de novembro de 1964. Base da Legislação Federal do Brasil. Disponível em: <http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%204.5041964?OpenDocument&AutoFramed>. Acesso em: 31 mar. 2008.
6 PELO direito à comunicação. Rio Mídia, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.multirio.rj.gov.br/portal/riomidia/rm_entrevista_conteudo.asp?idioma=1&idMenu=4&label=Entrevistas&v_nome_area=Entrevistas&v_id_conteudo=67556>. Acesso em: 6 abr. 2008.
7 EXECUTIVA NACIONAL DOS ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. Histórico. Disponível em: <http://www.enecos.org.br/historia.htm>. Acesso em: 4 abr. 2008.
8 FEDERAÇÃO NACIONAL DOS JORNALISTAS. Luta Fenaj. Disponível em: <http://www.lutafenaj.com.br/manifesto.htm>. Acesso em: 30 mar. 2008.
9 DETONI, Márcia. Desenvolvimento da Rádio Difusão. Blog da Bia, Porto Alegre, 22 set. 2005. Disponível em: <http://biadornelles.blogspot.com/2005/09/desenvolvimento-da-radiodifuso_22.html>. Acesso em: 27 mar. 2008.
10 REFORMA Política precisa democratizar a Comunicação. Ciranda International de l’information indépendente. Disponível em: <http://www.ciranda.net/spip/article1211.html?lang=fr>. Acesso em: 31 mar. 2008.
11 MORAES, Dênis de. Mídia e Indústrias Culturais na América Latina: concentração e luta pela diversidade. In: GOMES, Pedro Gilberto; BRITTOS, Valério Cruz (Orgs.). Comunicação e Governabilidade na América Latina. São Leopoldo: Unisinos, 2008. p. 89-104. p. 90.
12 MORAES, Dênis de, op. cit., p. 91.
13 MORAES, Dênis de, op. cit., p. 91.
14 BRITTOS, Valério Cruz. A Economia Política da Comunicação e o papel do receptor. Conexão: Comunicação e Cultura, Caxias do Sul, v. 2, n. 4, jul.-dez. 2003. p. 68-69.
15 BRITTOS, Valério Cruz, op. cit., p. 69.
16 Ibid., p. 78.
17 Para um bom debate dos conceitos de territorialização e vida econômica local, ver SILVA, João Gabriel Monteiro e. A Segregação Residencial em Rio das Pedras. Dissertação de mestrado em do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional do IPPUR/UFRJ; Rio de Janeiro, UFRJ, 2006.
18 HAUSSEN, Doris Fagundes. Rádio e Política: tempos de Vargas e Perón. Porto Alegre: PUCRS/Famecos, 2001. p. 130.
19 HAUSSEN, Doris Fagundes, op. cit., p. 96.
Referências
BRASIL. Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.ancine.gov.br/media/Constituicao_Federal_EC53.pdf>. Acesso em: 5 abr. 2008.
BRASIL. Lei 4.504/1964, de 30 de novembro de 1964. Base da Legislação Federal do Brasil. Disponível em: <http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%204.5041964?OpenDocument&AutoFramed>. Acesso em: 31 mar. 2008.
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