Sundance e a arte da democracia
PARK CITY, Utah. Evento tradicional de inverno, o Festival de Cinema de Sundance transforma o pequeno povoado de montanha em um centro efervescente da indústria cinematográfica. Ainda que grande parte da atenção concentre-se nos espectadores famosos, a verdade é que Sundance se converteu em um lugar de encontro fundamental, onde a arte, o cinema, a política e a dissidência se entrecruzam. Aqui estréiam muitos dos documentários mais impactantes e inspiradores produzidos ao longo do ano. Filmes sobre autênticas lutas de base que dão conta dos vai-e-vens da história da justiça social e os temas mais quentes da atualidade. Produções que ensinam e inspiram uma audiência cada vez maior sobre a verdadeira natureza e o custo da democracia direta.
"A última montanha," cujo título em inglês é "The Last Mountain," corresponde a um documentário que trata da ameaça que atualmente espreita a montanha Coal River Mountain, em Virginia Ocidental: a extração de carvão a céu aberto, uma das formas de mineração mais devastadoras da atualidade, pode sumir com a montanha. Os principais culpados são a empresa de carvão Massey Energy e seu ex-diretor-geral, Don Blankenship. Uma ampla coalizão de ativistas de todo mundo tem lutado insistentemente para deter Massey. Esta coalizão é impulsionada por gente comum, trabalhadores das populações próximas e das aldeias dos Apalaches. Robert F. Kennedy Jr., ambientalista e advogado de longa trajetória, uniu-se a eles nesta luta e aparece no filme. Perguntei-lhe sobre a luta que levam adiante:
"O filme trata da subversão da democracia estadunidense. No ano passado, com o veredito dado no caso "Citizens United contra a Comissão Federal Eleitoral", que autoriza às grandes corporações a destinar somas ilimitadas de dinheiro à campanha publicitária dos candidatos, a Corte Suprema anulou um precedente estadunidense que tinha sido inquestionável por um século, e se livrou de uma lei aprovada em 1907, durante a presidência de Teddy Roosevelt, que protegia o sistema democrático da grande concentração de riqueza responsável por uma cleptocracia corporativa ao longo da época dourada, tempos em que os estadunidenses tinham entregado sua democracia… Pela primeira vez desde a época de ouro, vemos como esse tipo de concentração econômica regressa a nosso país."
Kennedy referiu-se à subversão do papel da imprensa, dos tribunais, do Congresso e dos parlamentos estatais exercida pelo poder corporativo: "Penso que a erosão de todas estas instituições da democracia estadunidense levou as pessoas que se preocupam com o país e com sua saúde cívica a empreender estas campanhas de desobediência civil e de ação a nível local."
Este é um mês histórico para Robert Kennedy Jr. É o quinquagésimo aniversário da ascensão de seu tio John Kennedy como presidente e também da nomeação de seu pai, Robert Kennedy, como Promotor Geral. Perguntei-lhe pelo legado destes dois políticos, ambos assassinados.
"Para mim, o mais importante que fez John Kennedy, e que também meu pai tratava de fazer, foi se opor ao complexo militar-industrial. O Presidente Eisenhower, em seu discurso final, pouco antes do meu tio tomar às rédeas do poder, disse que o complexo militar-industrial constituía a maior ameaça contra a democracia estadunidense na história da república. O crescimento descontrolado do complexo militar-industrial, unido às grandes corporações e membros influentes do Congresso, que lento mas sistematicamente vinham privando os estadunidenses de seus direitos civis e constitucionais, direitos que tinham feito deste um país exemplar, era a maior ameaça para o país."
Aqui em Sundance, em um dos momentos mais emocionantes, Kennedy, recém chegado do funeral de seu tio Sargent Shriver (fundador da organização Corpos de Paz), saiu ao palco depois da projeção de "A última montanha" e recebeu o abraço de Harry Belafonte, personagem central do filme que inaugurou o festival deste ano "Canta tua canção," uma impactante biografia do cantor e ativista que é realmente uma crônica dos movimentos pela justiça racial e econômica do século XX.
Belafonte foi um dos confidentes mais próximos do Dr. Martin Luther King Jr. Falei com Harry a respeito de sua trajetória como ativista e de sua opinião sobre o Presidente Barack Obama. Disse-me: "Durante sua campanha para a presidência, em um ato onde Obama estava falando diante de empresários de Wall Street, em Nova York, eu lhe disse: ’Bom… espero que você faça cargo do desafio com mais contundência,’ e ele me respondeu: ’Bom…quando você e Cornel West vão me dar um respiro?’ Ao que contestei: ’Que lhe faz pensar que não lhe damos?’"
Belafonte era amigo de Eleanor Roosevelt, a esposa do Presidente Franklin Roosvelt. Ela lhe contou uma conversa entre seu marido e A. Philip Randolph, um dos principais organizadores da "Marcha de Washington pelo trabalho e pela liberdade" em 1963 e, antes disso, o principal impulsionador do sindicato de trabalhadores negros da ferrovia, Brotherhood of Sleeping Car Porters. Randolph explicou a Roosevelt que era preciso melhorar a situação das pessoas negras e dos trabalhadores do país e Roosevelt lhe disse que não discordava em nada com o que acabava de dizer. Ao contar-me a história aqui em Sundance, Harry se recostou em sua cadeira e repetiu o que Roosevelt completou a Randolph: "Saiam às ruas e obriguem-me a fazê-lo."
—————————
Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
@2010 Amy Goodman
Texto en inglês traducido por Fernanda Gerpe, editado por Gabriela Díaz Cortez y Democracy Now! en español, spanish@democracynow.org .
Texto em espanhol traduzido por Rafael Cavalcanti Barreto, revisado por Bruno Lima Rocha.
Amy Goodman é âncora do Democracy Now!, um noticiário internacional que emite conteúdo diário para mais de 650 emissoras de rádio e televisão em inglês, e mais de 250 em espanhol. É co-autora do livro “Os que lutam contra o sistema: Heróis ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos”, editado pelo Le Monde Diplomatique do Cone Sul.