28 de março de 2012, da Zona Sul, periferia de Maceió, Henrique Bezerra
No fim da tarde do dia 28 de março de 1968, por volta das 18h, foi assassinado o jovem paraense, estudante secundarista, que recém completara 18 anos, Edson Luís de Lima Souto. O estudante jantava momentos antes de mais uma manifestação da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (FUEC), no restaurante Calabouço, cidade do Rio de Janeiro. Os estudantes protestavam simplesmente contra o aumento do preço da refeição, que consideraram abusivo, e pela conclusão das obras do restaurante.
Um protesto “simples”, considerando suas reivindicações e por ser uma ação corriqueira naquele espaço, porém, realizado num momento de tensão política e social, em pleno ano de 1968. O Calabouço funcionava em outro local e acabou demolido sem explicação confessa. Porém, acredita-se que a demolição ocorrera em virtude dos preparativos para uma reunião do Fundo Monetário Internacional, no Museu de Arte Moderna, próximo do antigo restaurante.
Para alguns, o emblemático ano começou com esse acontecimento. A partir daquele dia, foram inúmeras manifestações de rua, aglutinando diversas categorias sociais. Com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), boa parte dos estudantes – responsáveis por expressiva participação na resistência política – avaliou que já não havia mais possibilidade de mobilizações como até então eram desenvolvidas. Partiram assim para a clandestinidade que exige a luta armada. O assassinato de Édson Luís tomou proporções gigantes, devido, principalmente, ao caráter explícito e covarde de tal ato.
Não se tratava de mais uma pessoa que “fora suicidada” (justificativa bastante utilizada pelos torturadores – como no caso do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado) ou então “apenas” mais um caso de “desaparecimento” (outra justificativa exaustivamente utilizada pelos partidários do Golpe). Tratava-se, isto sim, de um assassinato! Aos olhos de todos e todas que se faziam presentes naquele restaurante ou ao seu redor, a exemplo dos jornalistas Ziraldo e Zuenir Ventura, que estavam na redação de uma revista que tinha sede próxima ao Calabouço.
Com um tiro no peito, caiu morto “um jovem que poderia ser seu filho” – frase que se tornou uma consigna nas grandes manifestações do enterro, das missas de Édson Luís e até na passeata dos 100 mil. Na tentativa, frustrada e ridícula, de justificar o assassinato, o General Osvaldo Niemeyer Lisboa, superintendente da Polícia Executiva, afirmou que “a polícia estava inferiorizada em poder de fogo” (Poerner, 1979). Aqueles estudantes – e desconheço relatos que afirmem o contrário – estavam “armados” com paus, pedras, garfos, facas, pratos…“Armas” encontradas em qualquer restaurante ou rua ontem e hoje. Mesmo assim, esse militar tenta justificar com tal argumento.
Além disso, a edição do jornal estudantil O Metropolitano, de abril de 1968, ao falar sobre a brutalidade da violência policial, ressalta que a prova de tal brutalidade residia não apenas no assassinato do estudante, mas, também, nas “diversas perfurações a poucos centímetros do chão, nas paredes do restaurante. Pelo menos seis dessas perfurações se encontravam a metro e meio do solo”. (in Valle, 1998). Ou seja, atiraram para matar, de fato!
Frente ao ocorrido, o jornal que fazia oposição à ditadura civil-militar no Brasil, Correio da manhã, no editorial do dia seguinte (29 de março de 1968), posiciona-se sem a farsa da imparcialidade:
“Estudantes reuniram-se ontem, no Calabouço, para protestar contra as precárias condições de higiene do seu restaurante. Protesto justo e correto. (…) Apesar da legitimidade do protesto estudantil, a Polícia Militar decidiu intervir. E o fez à bala. (…) Não agiu a Polícia Militar como Força Pública. Agiu como bando de assassinos. Diante dessa evidência cessa toda discussão sobre se os estudantes tinham ou não razão – e tinham. E cessam os debates porque fomos colocados ante uma cena de selvageria que só pela sua própria brutalidade se explica. Atirando contra jovens desarmados, atirando a esmo, ensandecida pelo desejo de oferecer à cidade mais um festival de sangue e morte, a Polícia Militar conseguiu coroar, com esse assassinato coletivo, a sua ação, inspirada na violência e só na violência. Barbárie e covardia foram a tônica bestial de sua ação, ontem. O ato de depredação dos restaurante pelos policiais, após a fuzilaria e a chacina, é o atestado que a Polícia Militar passou a si própria, de que sua intervenção não obedeceu a outro propósito senão o de implantar o terror na Guanabara. Diante de tudo isso, depois de tudo isso, é possível ainda discutir alguma coisa? Não, e não. A Guanabara, cidade civilizada e centro cultural do Brasil, não perdoará os assassinos”. (in Valle, 1998).
Com as ruas escuras, as luzes dos postes apagadas, mesmo já sendo à noite, as “autoridades da ditadura” efetuavam mais uma tentativa frustrada de “abafar” o que estava acontecendo, inclusive para que a população não lesse os diversos cartazes empunhados pelas que participavam do cortejo fúnebre. E, à medida que o caixão de Édson Luís de Lima Souto descia para sempre, em várias partes do cemitério de São João Batista, na capital fluminense, ali e em várias partes do Brasil, o juramento era feito e compartilhado: “neste luto começa a luta!”.
Pelo direito à Memória… Pela necessidade da luta!
Passaram-se 44 anos daquele fim de tarde. Mais de quatro décadas e a violência de Estado continua presente como sempre esteve. Em breve, no dia 1º de abril (considero essa data, mesmo sabendo que alguns defendem que o “aniversário” do golpe seja em 31 de março), completa-se 48 anos do golpe civil-militar de 1964. São 48 anos de impunidade, de “verdade velada” (e não revelada).
Mesmo com uma presidenta e vários parlamentares que sofreram na pele as consequências do golpe, a maior parte dos arquivos da ditadura (ou, ao menos, aqueles que ainda não foram destruídos – prática comum entre os partidários do regime militar) continua guardada por diversas chaves e sob os olhares atentos dos generais que hoje, no lugar da punição por seus atos, vivem confortavelmente e desfilam como símbolos vivos de um país que não se importa nem mesmo com sua História. A Comissão da Verdade continua “no papel”. Um engodo que, ao que parece, no máximo, produzirá alguns novos documentos com informações não tão novas assim. E pronto.
Baseados na argumentação de que a Lei da Anistia sela a conciliação nacional, torturadores e demais partidários do silêncio que deriva do medo, continuam impunes. E diversas mortes (seja a de Édson Luís, Vlado ou o alagoano Manuel Fiel Filho – para citar apenas alguns nomes entre tantos “suicidados” e “desaparecidos” conhecidos e anônimos) sejam tratadas como meras “fatalidades”. De acordo com o que foi afirmado pelo cientista social Bruno Lima Rocha:
Negar que o Estado brasileiro deliberadamente torturou, matou, cometeu desaparição forçada, violentou, liberou seus chacais para saque e botim de bens de opositores é negar a história do país. […] Infelizmente esta mesma negação do óbvio faz com que tenhamos aprovado a Anistia para criminosos oficiais e, ao contrário, das demais democracias do ConeSul, sermos o país que menos puniu a seus antigos algozes. (2012)
Hoje, de forma explícita ou “legal”, a exemplo da máquina de extermínio permitida por lei que recebe o significativo nome de Caveirão; ou de meios mais sofisticados, vários jovens como Édson Luís de Lima Souto continuam sendo silenciados e/ou assassinados diariamente, em especial, nas periferias das cidades. Crimes de intolerância parecem ser cada vez mais tolerados pelos quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e Midiático). Aqui e acolá, crimes de ódio às diferenças tornam-se comuns. Por outro lado, as manifestações “por paz” parecem tentativas de conforto pessoal e, de tão estéreis, soam irônicas. As feridas no tão surrado Direitos Humanos continuam abertas. E assim continuarão até a dignidade ser um sentimento/ação de rebeldia.
* Henrique Bezerra é concluinte do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas e militante de organização popular autônoma.
Referências:
MARTINS FILHO, João Roberto. Rebelião estudantil: 1968 – México, França e Brasil. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1996.
POERNER, Artur José. O poder jovem: história da participação dos estudantes brasileiros. 2ª edição: revistada, ilustrada e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
ROCHA, Bruno Lima. A comissão da verdade e o silêncio dos culpados. Março de 2012. Artigo visualizado em 28 Março de 2012. No portal: http://www.estrategiaeanalise.com.br
VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.