Janeiro de 2019, Ricardo Camera, Lucas Santos e Bruno Lima Rocha
Estamos sob o bombardeio midiático e mesmo antes da crise da Nova República e do golpe com apelido de impeachment que derrubou a presidenta Dilma Roussef em seu segundo mandato, há um consenso forçado – ou um consentimento forçoso – onde se associa a imagem de empresas públicas ou estatais como “ineficientes”. Ao mesmo tempo, as falácias de modelos neoliberais fazem com que parte da população aumente tanto sua desconfiança para com o aparelho de Estado (o que é compreensível), mas também, assuma como suas teses que ferem totalmente a soberania do Brasil sobre seu destino e território. Tal é o caso da Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A., nascida uma estatal e transformada em transnacional de controle brasileiro até a “fusão” com a estadunidense Boeing.
“É preciso derrubar os mitos que cercam a operação entre a Embraer e a Boeing”. Não é uma parceria, ao contrário do que disseram os presidentes das duas empresas. Os negócios da Embraer vão se dissolver na nova empresa, quando ela for englobada por uma companhia muito maior. Seguiríamos como gado para o abate a quase “inevitável” via das fusões e aquisições. Dizem os “espertos do mercado” que não há outro caminho neste mercado de gigantes, mas é bom usar as definições certas. Isso se a “fusão” for confirmada em definitivo. Geralmente a indústria aeronáutica e aeroespacial é um componente em que se verifica a capacidade industrial e tecnológica de um país independente. Ou seja, privada ou estatal, ter uma indústria desta envergadura é sinal de grandeza de um país. Perde-la é derrota de igual envergadura.
Como toda empresa estratégica, privada ou não, a mão do Estado capitalista está presente. “Mesmo depois de ser privatizada, a fabricante de aviões sempre voou com a ajuda do Estado, só do BNDES foram R$ 8 bilhões de financiamentos e mais US$ 22 bi de crédito à exportação.” Disse a jornalista Miriam Leitão em sua coluna, na mesma semana que a Embraer e a Boeing anuncia a criação de uma joint-venture realizada no valor de 5,2 bilhões de dólares. Basicamente, a Boeing irá se apoderar nova empresa no que tange a parte de aviação civil, ficando com 80% da ações[1]. Não obstante, deve-se levar em conta, na comparação entre as empresas, que a Embraer teve em 2017 lucro líquido de R$ 795,8 milhões de reais e US$ 18,9 bilhões de valor de mercado, enquanto, em outro patamar de escala, a Boeing teve no mesmo ano uma receita líquida de US$ 8,1 bilhões de dólares e valor de mercado de US$ 92,333 bilhões – sem mencionar sua integração em diversas cadeias globais de valor. A Boeing tem valor de mercado 11,3 vezes maior do que a Embraer. Afinal, o que observamos é ou não uma empresa dos EUA em processo de aquisição de uma empresa brasileira de grande valor estratégico nas suas dimensões econômica, política e militar? Logo, em isso se consumando, trata-se de uma evidente violação de soberania nacional? Sim, cremos que sim.
Para entender esse fato e seus possíveis desdobramentos é preciso ter noção da lógica maior que atravessa a questão. Não basta simplesmente se indignar diante da venda da empresa e apenas propor o exato oposto, dada a arapuca que os expoentes notórios da centro-esquerda nacionalista não perceberam ainda. Ou fingem não perceber. Contudo, o coro neoconservador e liberal ao acordo Boeing-Embraer também é contraditório aos interesses brasileiros. Está mais para um America First! E o governo do presidente Jair Bolsonaro, aquele que bateu continência para um representante diplomático do America First! – pretende manter o negociado.
De fato, as alternativas à Embraer são complicadas, para não dizer difíceis. Mas afinal, que arapuca é essa em que o Brasil caiu? Bem, a lógica resumida da armadilha é que os Estados Unidos, graças ao alto grau de desenvolvimento tecnológico de seus centros de pesquisas e complexo industrial-militar – costurados em uma grande estratégica nacional para derrotar a URSS – puderam ser a vanguarda de tecnologia sofisticada no mundo. Todavia, a partir dos anos ’70 e ’80, os países emergentes – Brasil, Argentina e tigres asiáticos – e os aliados desenvolvidos e reestruturados da guerra – Comunidade Europeia e Japão – também passaram a almejar projetos nacionais de desenvolvimento tecnológico, que lhes conferissem o prestigio e autonomia frente a sistemas de telecomunicações e TI, indústria aeroespacial, indústria bélica e correlatos.
Contudo, existiam entraves reais para esses países, tanto no quesito de cooperação internacional, como na tentativa de se produzir sozinho determinada cadeira de valor. Em outras palavras, a maior parte do mundo, sob a influência direta ou indireta dos Estados Unidos, não poderia fazer acordos de investimentos e transferência de tecnologia com a URSS e seus aliados. Não obstante, o desenvolvimento unilateral de tão sofisticada ciência tornaria o processo muito lento e custoso, visto que plantar alimentos e ter indústria de bens de capitais são “estágios” que os países em desenvolvimento e desenvolvidos citados já tinham cumprido. Agora, o complexo industrial-militar e seus derivados lidam com componentes muito mais avançados, que levam anos de planejamento e Pesquisa & Desenvolvimento (P&D). Os Estados Unidos, por seu turno, tinham noção de que não poderiam perder seus mercados cativos, nem permitir a emergência de potências militares e tecnológicas em seu quintal – ameaçando sua hegemonia geopolítica e geoestratégica. Por exemplo, a tentativa de desenvolvimento industrial autônomo durante o governo Geisel e a projeção de poder do Brasil sobre o Atlântico Sul, poderia implicar em presença geoestratégica no continente africano, algo que veio a ocorrer novamente durante os dos governos de Lula e ao menos o primeiro governo Dilma.
Este tipo de criação de excedentes de poder, caso impliquem também o controle sobre cadeias sensíveis – como as de tecnologia militar associadas à indústria bélica e de alta complexidade – pode criar uma relação direta Sul-Sul, onde o Brasil pôde (ao menos parcialmente) exercer autonomamente sua política externa. Territórios com as dimensões potenciais do Brasil são “de por si” uma ameaça potencial permanente para as potências, e especificamente para a Superpotência que projeta poder militar na América Latina.
Concomitantemente, a indústria nascente e já na forma de oligopólios do Vale do Silício desejava expandir mercados e obter ganhos de produtividade em outras regiões do globo. Então a manobra estratégica foi a seguinte: difundir os capitais tecnológicos norte-americanos em todo o mundo capitalista, de modo a incorpora-los nos projetos nacionais de cada país; assim, obtendo uma série de controles sutis, e dirigindo o processo da indústria sofisticada nesses Estados. Por exemplo, impedindo o avanço excessivo de tecnologia estrangeira ao não transferir todas as “cartas da manga”, mas apenas as que lhes interessavam.
Por exemplo, tendo acesso aos códigos fontes dos outros países, conhecendo detalhes precisos de seu sistema de inovação e produção, espionagem industrial, backdoors e até boicote ou destruição da indústria local. Como no emblemático caso da compra do parque bélico argentino pelo maior oligopólio das armas do planeta, a norte-americana Lockheed Martins. Ou nos sucessivos embargos do governo dos EUA às vendas da Embraer – relativas aos EMB-314 Supertucanos; ou ainda, o boicote da aviônica feito nos anos 1980, em razão da política estadunidense supostamente interessada na proteção dos relação aos diretos humanos, que de fato eram violados pelo governo militar. A falta de aviônica (tecnologia sensível de circuitos e eletrônica), sem a qual os aviões não voam, fez a Embraer parar sua produção. Eis a arapuca montada. Somente Estados Unidos e aliados
anglo-saxões, França, Japão e Rússia possuem domínio sobre a tecnologia embarcada na forma de aviônicos. Na década de ’80, o país apostou na criação de um caça bi-nacional, o AMX, em parceria com a indústria bélica da Itália. O projeto não foi adiante.
Além dos aviônicos, uma série de outros componentes chamados de aeroestruturas, vistas acima na pirâmide de subcontratos e fornecedores, e de alto valor agregado, não se produz o Brasil. Desse modo, o cenário que se projeta para o pais se eventualmente não aceitássemos no acordo Boeing-Embraer, e de repente, houvesse uma guinada ao conhecido “Brasil Potência”, seria uma resposta geoestratégia agressiva dos Estados Unidos, via uma possível escalada de embargos e boicotes aos produtos da Embraer. Seria importante testar esse tipo de confronto, mas o mesmo implica um alto nível de coesão interna, visto que seria a contraposição de interesses estratégicos do Brasil contra o dos EUA. Isso, em tempos de ilusões neoliberais e tentativa de alinhamento automático com o governo Trump seria impensável com a ausência de um nacionalismo popular mais agressivo e também mais entranhado dentro do aparelho militar brasileiro.
Como mencionado, esse tipo de boicote já ocorreu diversas vezes, e não apenas com o Brasil. Como o caso exemplar de chantagem internacional, observemos a questão da Alemanha Ocidental e França, nos anos ’70, as quais desenvolviam um sistema de satélites de telecomunicações autônomo, o Simphony. Seu lançamento falhou miseravelmente e, logo em seguida, os EUA se ofereceram para lançar o programa Simphony somente na condição de que a Alemanha e França não promovessem telecomunicações com esses satélites – promovendo, então, a manutenção do monopólio anglo-americano da Intelsat.
Consequentemente, se por um lado uma guinada à lá Geisel é ameaçada pela possibilidade de chantagens e embargos, de outro, há a questão comercial. De fato, mesmo sendo a terceira maior fabricantes de aviação civil do mundo, a Embraer não terá condições de competir com a fusão canadense-europeia da Airbus-Bombardier e a Boeing norte-americana. Ambas possuem um parque industrial tecnológico e fontes de financiamento que estão a anos luz de um país semiperiférico. Além disso, a tendência é que o Brasil corte investimentos públicos e subsídios, incluindo compras governamentais das forças armadas, o que dificultaria ainda mais a sobrevivência da Embraer. Esta é a armadilha formada. Isso implica em quebra imediata da Embraer? Evidente que não, apenas que a empresa brasileira perderia em volume, sendo obrigada a buscar mercados específicos e aprofundar a presença na aviação regional chinesa (em específico) e asiática como todo. Mas, para realizar esta medida que acabamos de citar, seria preciso uma vontade coesa e capacidade de consecução das decisões estratégicas.
Isso quer dizer que o Brasil não tem alternativas? Bem, elas existem, mas como afirmamos acima, são complexas e envolvem um trabalho de política externa, comércio exterior e política industrial/ciência e tecnologia que o próximo governo parece não ter como meta. Primeiro, ao redor de metade das exportações brasileiras de aeronaves e helicópteros tem como direção os Estados Unidos, (o que reflete uma espécie de dependência também na esfera de exportações). Nesse sentido, poderíamos cortar todas as exportações do complexo aeronáutico brasileiro aos vizinhos do norte – e até, se há audácia para isso, não entregar os projetos que já foram pagos, a menos que os Estados Unidos tirem embargos. Essa seria uma estratégia arriscada, dentro do pior dos cenários, por que também teria um alto custo político e econômico ao Brasil, e contribuiria para quebrar todo o setor aeroespacial local – haja vista que não temos capacidade geoeconômica de contrapor decisões da superpotência na mesma medida. Não temos o potencial de nos defender tal qual às retaliações no preço do petróleo promovidas pela OPEP nos anos ’70; mas sempre é possível contar com uma manobra de nacionalismo popular interno de modo a contrapor a presença ideológica e cultural dos EUA sempre enfraquecendo a coesão de nossos países.
Outra estratégia para nos mantermos autônomos seria realizar acordos de cooperação internacional sul-sul com os países do BRICs, dado que Rússia, China e Índia tem alto nível tecnológico, dominam cadeias globais de valores; a própria China já realizou parcerias no passado com a Embraer, e também deseja construir uma indústria aeronáutica competitiva. Seria uma saída de mestre. Mesmo o Japão, Coreia do Sul, França e Alemanha desejam se ver mais autônomos dos arbítrios dos Estados Unidos. São possíveis parceiros, que dependem de uma grandiosa persuasão diplomática, um jeitinho brasileiro…
Há uma terceira saída. A mais “conveniente” dentro dos parâmetros do governo que se vislumbra. Celebrar um novo acordo com a Boeing, porém, que a nova empresa seja no mínimo dividida 50/50 e com a Golden Share do governo brasileiro, e não 80/20 como está agora. Em segundo lugar, não negociar as áreas em que as forças armadas estejam envolvidas. Seria o mais correto dentro do horizonte imediato. Um adendo: como fica a joint-venture da Embraer e Telebrás, a Visiona, empresa construtora de satélites brasileira? Haverá entrelaço institucional-político-econômico-jurídico com os Estados Unidos? Sabe-se que, se for o caso, nossos códigos-fonte necessariamente passarão em mãos norte-americanas, tendo em vista seu arcabouço jurídico. O mesmo vale para a área militar, se firmado o acordo de outra joint-venture para a produção do avião KC-390. A contradição se agrava quando vemos formalizado nos termos da licitação apresentada pelo governo no recente processo de compra de caças militares, o projeto FX-BR. A licitação utilizava de Acordos de Offset, cláusulas de transferência completa de tecnologia, obrigatórias no Brasil desde 1992 para compras governamentais no setor aeroespacial, que objetivam uma ampla absorção de tecnologia externa para redução da discrepância tecnológica frente aos países de economia desenvolvida.
Em suma, há motivos suficientes para afirmar que a Embraer está enrascada, e que os militares, ao não pressionarem pela mudança nos termos, estão embriagados e catatônicos com os assuntos eleitorais nacionais – leia-se, protagonismo na política doméstica e abandono da projeção de poder autônomo dentro do Sistema Internacional. Ainda que, sejamos justos, os generais e brigadeiros tenham se preocupado, ao menos um pouco, com a parte militar da Embraer, teremos um desastre quase irrecuperável se a Boeing arrebentar nosso frágil tecido tecnológico-industrial.
A encruzilhada é de dupla envergadura. A mais exposta é a incorporação da Embraer S.A. e o pouco que resta do sonho de Alberto Santos Dumont e dos pioneiros da aviação brasileira se transformar em distopia imperialista. A outra encruzilhada é supor que pela simples existência de forças armadas estas sejam suficientemente nacionalistas e comprometidas com nossa soberania a ponto de serem anti-imperialistas diante da Superpotência. Mas, é preciso reforçar. Defender a Embraer é defender a capacidade instalada no território brasileiro e qualquer saída de longo prazo vai precisar de uma indústria aeronáutica e de aviação de caça para defender nosso espaço aéreo das ameaças imperiais.
Ricardo Camera é estudante de relações internacionais; Lucas Santos é formado em ciências da computação e Bruno Lima Rocha é professor de relações internacionais e jornalismo; todos são membros do Grupo de Pesquisa Capital e Estado (https://capetacapitaleestado.wordpress.com)
[1] Ver em: https://g1.globo.com/economia/noticia/boieng-e-embraer-fecham-acordo-para-formar-joint-venture.ghtml
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