O longo caminho para o poder desta classe, passa pelo diálogo interno como frente de oprimidos e a vitória contra o Estado pára-colonial. - Foto:alai
O longo caminho para o poder desta classe, passa pelo diálogo interno como frente de oprimidos e a vitória contra o Estado pára-colonial.
Foto:alai

Vila Setembrina dos Farrapos, janeiro de 2003

1- Abertura

O artigo de María Clemencia Ramírez (in Santos, 2002, na bibliografia) tomado como texto base para este trabalho aborda um interessante cenário de negociação e conflito. Contando com intensa participação de setores populares, cuja característica marcante é se desenvolver em área conflagrada de guerra civil há no mínimo três décadas. Trata-se da região da Amazônia Ocidental colombiana, especificamente nas micro-regiões do Putumayo, Guaviare, Caquetá e Baixa Bota Caucana (todas estas áreas produtoras de folha de coca). De julho a setembro de 1996, a Colômbia viu uma articulação de camponeses desta zona, também conhecidos como cocaleros, como uma reação a política de força do Estado colombiano para erradicar as culturas tradicionais consideradas ilícitas.

A articulação do movimento dos cocaleros, sob forma de movimentos cívicos cuja tradição política nesta zona é bastante anterior, é o eixo de análise deste trabalho que apresentamos. Utilizaremos no texto, conceitos apresentados por autores contemporâneos da teoria democrática, esfera pública e sociedade civil. A partir destes conceitos, que muitas vezes não os compartilhamos de todos, vamos analisar alguns aspectos deste processo que se desenvolve na selva colombiana, e que nos pareceram relevantes.

Optamos por desenvolver um determinado eixo de discussão. Este trata da forma das relações, processo organizativo da sociedade civil local e autonomias negociadas entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), o Movimento Cívico Regional do Putumayo e o Movimento Pacífico do Cauca (dos camponeses da Baixa Bota Caucana). Como complemento, procuramos desenvolver uma análise dos níveis locais do Estado e sua presença dentro das redes de relações vinculadas a FARC. Esta seria mais uma análise crítica das relações entre a FARC, os movimentos sociais e o Estado colombiano em suas formas apresentadas no conflito (militares e altos funcionários) e na gestão do poder local (funcionários da própria região). Nunca é demais recordar que os distintos atores estão envolvidos em negociar num cenário complexo, onde a linguagem política predominante é a violência sistemática. Terminamos com uma breve conclusão, apontando as idéias-força do cenário dado, a partir do eixo de análise conceitual empregado.

2- Movimentos, FARC, gestão do poder local e funcionários do Estado, um cenário complexo de sociedade civil

A região da Amazônia ocidental colombiana é vista pelos centros urbanos daquele país, como um território selvagem e não-civilizado. Uma fixação de imagens dos tempos da invasão e conquista espanhola, teve permanência para o período atual, sendo esta zona habitada por migrantes em busca de sorte e fortuna fácil, orientados pela insurgência e cuja fonte de renda são as culturas ilícitas (Ramírez, p.179). Área colonizada por migrantes despossuídos e que vivem em uma das frentes de combate da FARC, o governo central colombiano cria e reproduz uma imagem de representação onde estes camponeses (cocaleros, entre outros) são desprovidos de autonomia decisória, vontade política e capacidade de viver dentro dos parâmetros da sociedade constituída.

O Estado colombiano, tomando orientações e financiamento direto dos Estados Unidos da América (EUA; Ramírez, p.198), decreta em maio de 1996 duas operações militares (Condor e Conquista), de ocupação militar do terreno e fumigação dos plantios respectivamente. Uma vez que os cocaleros, por encontrarem-se à margem da lei, estariam impossibilitados de negociar e se organizar, o Exército, a Polícia Nacional e o governo central tomaram por princípio iniciarem uma ação unilateral. Já havendo uma trajetória e cultura política de articulação anterior, os camponeses destas regiões iniciaram uma contra-resposta já pré-acordada um ano antes, em reuniões de líderes camponeses durante um Seminário Internacional de Culturas Ilícitas.

Aos olhos do Estado colombiano e suas Forças Armadas (FFAA), não haveria a possibilidade de organização autônoma dos cocaleros, uma vez que estes, estando à margem da lei e sob tutela das FARC, seriam meros reprodutores das vontades políticas do ator armado insurgente. Segundo nossa visão, a constituição da identidade excluída, de afirmação de todo um setor como cidadãos de uma região (putumayenses, Ramírez, p.200), estabelece uma vigorosa capacidade de exercício da vontade política. Supostamente desprovidos de autonomia, vivendo e se organizando em um cenário de guerra civil, como e a partir do que estes cocaleros se organizam?

Segundo Fraser (in Calhoun, p.127), em sociedades estratificadas, ao contrário de países com regime democrático e de direitos universalmente estabelecidos, dá-se a necessidade de formação de contra-públicos, criados a partir da própria condição de dominância e subordinação. Ao gerar um contra-discurso, os cocaleros se afirmam a partir da própria exclusão exercida sobre eles, sendo a sua esfera pública, todo um setor social que sob intento de subordinação (ocupação militar, erradicação da cultura e implantação de planejamento estatal sobre a região), assim se identifica para responder à ofensiva militar.

Quando em dezembro de 1995 os camponeses rejeitam em carta enviada ao então presidente Samper o Plano Nacional de Desenvolvimento Alternativo (Plante), se estabelece operando no real as bases de associação através de formação de opinião e contra-posição, de forma pública e vinculada à uma identidade específica. Keane (apud Habermas, in Calhoun, p.454) aponta a importância de associações de formação de opinião, mas neste caso, esta não é apenas consultiva, mas é o motor de propostas (contra-propostas) perante ao Estado. Ainda nas observações de Habermas, o autor alemão trás o pensamento de Arendt (p.454) quando esta afirma ser a existência de entidades associativas formadoras de opinião a base da constituição da esfera pública autônoma, que por si é um dos fundamentos da sociedade civil.

Segundo a filósofa judia alemã, a formação de opinião livre é alvo da repressão de um regime com ordem totalitária. Concordamos com esta afirmação dizendo que em sociedades estratificadas, os agentes armados do stablishment (no caso colombiano, as FFAA do Estado e o Pára-Estado, aglutinado nas Autodefesas Unidas de Colômbia, AUC, Uribe apud Ramírez, p.191) têm a preocupação de deslegitimar a legalidade e autonomia, chegando até mesmo a atentar contra o direito de existência organizada do movimento dos cocaleros. Ou seja, além do exercício puro e simples da força, realizam um diálogo (ao menos com a esfera pública que estes agentes tem como válida, mídia incluída e que justifica e classifica a identidade dos seus opositores. Já o Movimento Cívico pelo Desenvolvimento Integral do Putumayo, assim como os demais atores sociais cocaleros, se afirma enquanto camponês e procura estabelecer bases de diálogo e discussão programática – em termos de reconhecimento das identidades e de política de desenvolvimento – com todos os atores presentes nas rodadas oficiais de negociação.

Foi justo o esforço por gerar e circular opinião própria de setores a princípio sem autonomia de voz, o que segundo os depoimentos existentes no texto base, gerou uma capacidade de mobilização, consciencialização e a unificar setores não necessariamente reconhecidos como cocaleros. Tilly (apud Arato & Cohen, p.500) afirma o vínculo entre o repertório de possibilidades de ações específicas e as mudanças estruturais que alterariam a vida cotidiana. Através da cobertura do território, com esforço político de gerar opinião própria, a pré-constituição do Movimento Cívico do Putumayo gerou uma unidade política construída, segundo o relato, a partir da ação comunicacional operando sobre condições concretas, e por sinal bastante adversas. Através de oficinas de informação sobre o plano de erradicação da coca, seguido de discussão ao nível local, se atinge dois marcos importantes: a unidade do Putumayo, a autonomia decisória da Baixa Bota Caucana em relação à FARC.

Segundo o texto base, através da discussão e da geração de opinião autônoma, os camponeses desta região se posicionam contra uma orientação da FARC. A orientação era a de levar a marcha para fora das terras de sua zona (Ramírez, p.187). Os cocaleros habitantes de algumas estradas vicinais da zona, simplesmente recusaram-se em ir, por identificar ser seu primeiro objetivo, a constituição de um município na área. Entendemos que isso empiricamente vai de encontro a um conceito expresso por Habermas (p.427), quando este afirma ter se dado conta que a cultura e voz plebéia não eram apenas um eco da cultura dominante. Não apenas, mas também é um contraprojeto às estruturas hierárquicas de um mundo de dominação. Segundo este autor, tais contra-efeitos não podem ser simplesmente neutralizados. Entendemos que embora menos tensa do que com o Estado, as AUC ou mesmo os partidos políticos tradicionais, a existência de uma relação hierárquica de fato com a FARC levou, através de um processo de formação de opinião, a expressar um contra-efeito de discrepância política (1).

É importante notar que a discussão e um minucioso trabalho de oficinas de informação, levou aos camponeses da Baixa Bota Caucana a identificarem em uma antiga reivindicação – a criação do município de Piamonte (Ramírez, p.188) – o principal objetivo nesta nova situação política, de fumigação e protesto cívico. Não se pode afirmar que a esfera pública Caucana levou diretamente à autonomia política integral destes camponeses, mas sim que fortalecera uma capacidade de autonomia relativa. Esta autonomia relativa já se manifesta no momento do protesto cívico (greve de mobilização de massa) e toma forma de representação e defesa de interesses nas rodadas de negociação (Ramírez, p.189).

Só é possível intentar compreender aspectos da relação da FARC com os camponeses, através das bases de poder local, informação esta que o texto base nos oferece. Mas, gostaria de antes apontar uma reflexão e crítica de Fraser na relação da esquerda, o aparato de Estado e a cidadania. Não é possível uma comparação da FARC com um proto-Estado, nem nenhum conceito ou idéia relativa similar. Mas, segundo o texto base, a relação da FARC com os movimentos sociais cívico-camponeses não se dá sob bases horizontais. Há algum grau coercitivo, ou de tomada de decisões unilaterais da parte do agente armado insurgente. Segundo Fraser (p.110), a sobreposição de um Estado de base socialista sobre uma esfera pública de associação e discussão, subordinando e ligando a segunda à primeira, cortara as possibilidades de desenvolvimento de uma idéia de socialismo com orientação democrática. Não se pode afirmar que a guerrilha não promovera a participação popular e descentralização administrativa como um de seus princípios e métodos organizativos (Ramírez, p.183). Mas ao mesmo tempo, nota-se um certo exagero de prerrogativas da parte deste ator ao exercer sua autoridade política (construída também através da manutenção da ordem e do monopólio da violência), prerrogativas estas que (legitimam tanto as suas ações como o seu autoritarismo (Ramírez, p.185) (2).

O outro lado da relação de autonomia restrita com a FARC, é justo a oposta das prerrogativas narradas no parágrafo acima. Além do plano declarativo, a FARC impulsiona e operacionaliza uma descentralização de poder, incentivando e gerando condições de força que possibilitam esta participação. Isto se dá na Colômbia, quando muitas vezes significa que a guerrilha garante a vida dos ativistas sociais. O agente armado vê a legitimidade republicana ser construída através da participação cidadã, que seria uma obrigação de envolvimento político (FARC apud Ramírez, p.183). Interessante é ver que este tipo de tradição, segundo Arato & Cohen (p.38), remontaria ao comunismo de conselhos e/ou a tradição anarquista de autogestão sócio-política. Segundo estes autores, as formas de auto-organização da sociedade política só se manteriam autônomas caso houvesse condições de preservar e proteger o desenvolvimento de espaços e formas apolíticas de solidariedade, interação e vida coletiva.

Compreende-se assim que, se transmutarmos estes conceitos para a realidade colombiana narrada no texto base, entendemos ser a supremacia tática e a hegemonia militar em determinadas regiões o elemento gerador desta proteção de desenvolvimento de participação cidadã sobre uma realidade bastante difícil e com risco de vida permanente. Por outro lado, esta supremacia unilateral é o que gera um grande número de prerrogativas onde as decisões da FARC são inquestionáveis, e noutras onde são apenas parcialmente questionáveis.

O mecanismo desenvolvido na região, e que faz parte do programa da FARC segundo o texto base, é o desenvolvimento de formas de gestão local. A forma encontrada na Amazônia Ocidental da Colômbia são as Juntas de Ação Comunal. É através destas que se organizam as marchas, como uma expressão da rede de relações sociais e políticas de toda a zona (Ramírez,p.185). Estes órgãos, localizados nos distritos, articulados através de seus chefes, conseguiram congregar diversos agentes coletivos, FARC, funcionários estatais locais, movimentos cívico-camponeses e partidos tradicionais incluídos. São os chefes comunais que tem a delegação para realizar o esforço de recorrerem os distritos mais distantes, gerando uma voz e sentido de identidade política, que é complementar a identidade excluída dos migrantes que são os colonos da área. Podemos apontar como decisiva a existência de uma rede de relações e de uma esfera pública dos atores interessados, que possibilitou a realização e legitimidade das marchas e greves, chamados de paros civicos.

Percebe-se também que a constituição de identidade política é uma categoria fundamental para os colonos dessa zona. A soma das trajetórias individuais, dentro de um mesmo sentido coletivo (trajetória de um setor social), gera vários pontos de confluência que facilitam o relacionamento das FARC com os camponeses (Ramírez, p.182). Outro ponto de convergência e que facilita a relação entre guerrilha e movimentos sociais, está no fato destes movimentos verem um avanço em suas agendas a partir da própria relação com os insurgentes (Romero apud Ramírez, p.183).

Se entendermos que a capacidade de negociação se dá sobre condições de força, e que a violência é a linguagem política hegemônica na Colômbia, esta equação torna-se assim óbvia. Assim, se está desconstruindo um argumento de possível vitimização dos movimentos sociais para com os insurgentes. Por sua parte, os movimentos sociais, segundo a autora, e cuja afirmação concordamos, conseguem manter sua autonomia de decisão (ainda que relativa) com a FARC através de duas bases. Uma é a vontade política da FARC de estabelecer a gestão do poder local. A outra base decisória, e que para nós é predominante, é a densidade que legitima os movimentos camponeses da região. O que gera esta densidade é justo o fato destes desenvolverem a esfera pública de seu setor social e assim constituírem sua identidade política. Estes dois pilares permitem processar as condições para a existência de uma rede da sociedade civil local, ainda que sob intensa guerra civil.

De acordo com as declarações do agente armado insurgente e dos fatos narrados no texto base, a FARC não impede, muito ao contrário, incentiva a participação cidadã nos assuntos públicos. Assim, ela controla as administrações públicas ao nível dos municípios onde detêm a hegemonia política e a supremacia militar (Ramírez, pp.183-184). É interessante notar que a guerrilha não só estimula a cobrança, mas a elaboração de projetos oficiais em conjunto com a administração do Estado ao nível local e regional. Apontamos isto como uma das hipóteses para o fato dos camponeses ter rejeitado o planejamento do Plante e proposto um outro projeto do governo central. A cobrança perante o Estado, vinda dos setores populares organizados, incluídos nas redes sociais vinculadas a FARC, possibilita a correlação de forças para que os militantes possam exercer a participação com menor risco de vida. Conforme dissemos, a guerrilha se legitima também fazendo avançar a agenda dos movimentos sociais. O adendo é que estes não apenas reivindicam resultados, mas também o co-planejamento.

Fraser comenta a possibilidade de relação entre projetos e realizações sociais quase autogestionárias e sua capacidade de relação com corpos decisórios centrais ou regionais. Isto também seria um diálogo manifesto, entre a esfera pública da interna destes setores sociais (contra-público), e o grande público, ou seja, a esfera pública vinculada aos setores decisórios da sociedade. (Fraser, p.135). Podemos afirmar sem exagero que a FARC concretamente se posiciona como um agente político-armado que defendera os interesses diretos da população. E, a promoção destes interesses se inclui realizar accountability do Estado nos planos regionais e municipais, mesmo que sob guerra civil. Sempre é bom lembrar que a FARC decretou penalizar aos funcionários públicos corruptos, assim como qualquer um que desvie dinheiro público. Cabe uma observação; digamos que este modo de accountability, é muito funcional no caso colombiano.

Isto obviamente aproxima a posição de alguns funcionários do Estado, especialmente os naturais da zona, para a compreensão e defesa de interesses dos cocaleros. A linha divisória entre sociedade civil e sociedade política quase que desaparece para os presidentes das Câmaras e o funcionalismo da região (Ramírez,p.206). Estes se posicionam junto aos cocaleros (inclusive por trajetória e histórico comum) e são partícipes do Plano de Desenvolvimento Integral. Podemos justificar que tanto pela trajetória e origem comuns, como pela forma com que as administrações municipais foram envolvidas, a sociedade civil local-regional avançou incluindo setores de funcionalismo e de gestão de poder local.

O avanço da sociedade civil e a sobrecarga de mobilizações significam, para Arato &Cohen (p.51), um aumento do custo se e caso as posições mais reacionárias se fizerem por avançar. A quebra de unidade de discurso dos funcionários do Estado colombiano nos parece um reflexo empírico, operacionalizando assim este conceito. Reconhecemos que um processo de transição política, vindo de regimes autoritários para democrático-representativos, é distinto de uma democracia formal marcada pela guerra civil, como é o caso da Colômbia. Mas ainda assim, a sociedade civil local gera um constrangimento de discurso, medidas e políticas por parte do Estado, operando através de Exército e Polícia Nacional incluídos.

Contrabalançando, a não-divisão de espaço entre as sociedades civil e política gera uma situação dúbia. Se por um lado aumenta a legitimidade e poder de negociação o posicionamento do funcionalismo local junto aos cocaleros, a liberação (via renda e salário) de treze dirigentes, com verba oficial, profissionalizando-os como negociadores e implementadores do processo de discussão (Ramírez, p.207), isto também abre margens para deslegitimar o próprio processo. Arato & Cohen discutem justo este tipo de auto-instrumentalização, fato que empiricamente narrado acima, se aproxima do processo da oligarquização de partidos e movimentos sociais (p.561). Segundo os autores, haveria de ir se apontando o potencial e a presença múltipla de atores do tipo social e político como algo positivo. E, o intento de gerar uma outra forma de relação entre estes atores, distinta assim da liberação financeira e da profissionalização de dirigentes.

3 – Apontando conclusões

O texto base e o os conceitos empregados por autores da sociedade civil e da teoria democrática nos apontam conclusões significativas. A primeira delas é a possibilidade de uma outra articulação entre a sociedade civil e a sociedade política (3), possibilidade esta tão viável que se realiza mesmo sob guerra civil. É óbvio também que isto só se realiza assim no caso narrado por ser uma orientação programática de um dos agentes armados, organização político-militar (OPM), como é o caso da FARC.

De sua parte, a guerrilha orienta e incentiva a participação, mas sem abrir mão de uma série de prerrogativas que esta OPM proclama como suas. Conclui-se assim que a rede de relações da sociedade civil local, construída sob apoio da própria guerrilha, na correlação de forças, carece de uma maior autonomia decisória. Levantamos a hipótese de a liberação financeira dos dirigentes haver sido uma aproximação de um modus operandi já conhecido, o da autonomia relativa. A diferença está que neste segundo caso, a autonomia relativa se dará com o Estado colombiano e não mais apenas com o Contra-Estado.

Por fim, o último tema a ser comentado é das identidades políticas. Sendo a Amazônia Ocidental colombiana uma região povoada de colonos de culturas ilícitas, povos indígenas e migrantes por motivos de falta de oportunidades sócio-econômicas, é a identidade a partir da trajetória comum de exclusão o traço unificador entre estes camponeses, os guerrilheiros e o funcionalismo local. Esta proximidade via origem comum, sem dúvida nos parece ter sido um dos fatores que possibilitara a extensão de uma rede de sociedade civil, motivada por ação comunicacional, dando vazão a voz de um setor simplesmente não-reconhecido pelo Estado central, e seus interesses diretos agregados, como o de reprodutor da política externa dos EUA.

A capacidade de articulação entre estes setores, especialmente os camponeses em geral, cocaleros e indígenas, gerou a condição de realizar uma mobilização em massa, forçando assim uma rodada de negociações e a construção de um plano alternativo de desenvolvimento diferente do original (que consistia em erradicação, fumigamento e nenhum gradualismo). O fruto político destas mobilizações retorna ao nível simbólico, sendo que este processo torna-se um símbolo político de memória recente, que pode vir a incentivar outra necessidade e/ou possibilidade de mobilização semelhante.

Assim, o exemplo dos camponeses desta região colombiana, ainda que no meio da guerra, significa uma capacidade de luta e organização popular como negação de uma condição histórica que naturalizara o abandono, estigma, marginalização e supressão de vontade política dos próprios camponeses.

 

Bibliografia

ARATO, L. & COHEN, J. Civil Society and Political Theory. Cap 1. The Contemporary Revival of Civil Society. Cap 10. Social Movements and Civil Society. Cambridge:MIT Press,1999.

FRASER, Nancy. Cap 5. Rethinking the Public Sphere: a contributionto the Critique of Actually Existing Democracy. in CALHOUN, Craig. (ed), Habermas and the Public Sphere. Cambridge:MIT Press, 1996

HABERMAS, Jungen. Cap 17. Further Reflection on the Public Sphere. in CALHOUN, op. cit.

RAMÍREZ, María Clemencia. Cap 3. A política do reconhecimento e da cidadania no Putumayo e na Baixa Bota Caucana: o caso do movimento cocalero de 1996. in SANTOS, Boaventura de Souza (org), Democratizar a Democracia, os caminhos da democracia participativa; Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.

Notas

1 Entendemos que o estabelecimento de uma relação hierarquizada entre um partido político e um movimento social que se constitui a partir da negação ao direito a ter direitos e de identidade excluída, não seja de forma alguma algo (inevitável( ou (natural( no jogo político. O mesmo vale para a relação comum ator armado, que classificaríamos como um partido armado, como é o caso da FARC. Tal relação pode ser ou não hierarquizada, democrática, ou totalitária, conforme apontaremos, brevemente, mais adiante.

2 Não se questiona, nem tampouco seria a função de um trabalho do gênero, o acionar armado em si. O que se constata, a partir da crítica de Fraser (1996), é o tipo de relação que se dá entre a instituição política FARC e os movimentos camponeses da região. Também não afirmamos a incondicionalidade de relação hierárquica entre um ator armado insurgente e os movimentos sociais existentes em sua área geográfica e/ou setor social de operação.

3 Isto profanamente também é chamado de uma nova articulação entre o político e o social, onde as relações seriam mais de diálogo,diminuindo assim as formas clássicas de correia de transmissão do político para o social.

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