Vila Setembrina dos Farrapos, Continente de São Sepé, 10 de outubro de 2006
O debate político e público é inerente à democracia. A lida implica em fazer compreender seus pontos de vista, gerando empatia por uma proposta. Quanto maior a capacidade cognitiva, mais necessária se faz sanar a equação: vontade – possibilidade. Ao invés de fazer análise de marketing político, gostaria neste artigo de, perdoem a redundância, debater o debate em si.
Uma das dúvidas que ocupa a mente de quem faz política no Brasil é a dimensão da propaganda e do debate público. Isto porque, embora o ensino fundamental já tenha quase 100% de oferta no país, convivemos com a triste condição do analfabetismo funcional. Os dados mais conservadores apontam o montante de 74% da população brasileira como analfabeta funcional. Ou seja, o pouco manejo do idioma baixa a capacidade de expressão letrada e absorção cognitiva.
Isto impede, por exemplo, que a maioria do povo possa fazer uma leitura acurada e crítica dos principais jornais. Recordo de haver feito uma intervenção neste sentido em um seminário acadêmico. Reconheço que minha fala resultou em uma ducha de água fria no debate, mas entendo que era necessária. O tema em pauta era a participação popular e o quanto de especialização seria necessário para materializar as vontades políticas das maiorias.
Óbvio que o tema e os fundamentos conceituais estavam longe demais da realidade da vila vizinha ao campus, onde se desenvolvia a peleia intelectual. E, a maioria das intervenções vinha de gente que defendia a profissionalização de uma burocracia “participativa”. Minha questão veio em sentido contrário. Associei o sucesso de um regime de democracia participativa à capacidade cognitiva, que geraria a redução dos custos e do processamento da informação. Afirmei ser essencial para a democracia brasileira uma cruzada nacional pela erradicação do analfabetismo funcional, incluindo neste esforço, outras formas didático-participativas da população.
Isto porque, para a maioria dos brasileiros, a leitura de um grande jornal (impresso ou eletrônico) é algo parecido com grego arcaico. Já as falas e polêmicas conceituais típicas da academia brasileira, com seu hábito de falar para si, é tão compreensível como o aramaico dos textos bíblicos originais. Resumindo, ninguém compreende muito, não há prova material das acusações, e menos ainda, conseqüência entre possibilidade real e intenção conceitual. Assim, é como se em campanha, cada operador político tivesse de se comunicar em várias linguagens, usando o mesmo idioma.
Este debate que aqui trago, infelizmente, não tem origem na formação acadêmica da “ciência” política. Tem sim outra raiz, tanto da preocupação como das soluções. Tenho a felicidade de conviver com um dos muitos lutadores anônimos contra esse problema estrutural no país: o analfabetismo funcional que ajuda a fortalecer ao analfabetismo político. Trata-se de um padre de sandálias, oblato de São Francisco de Sales, veterano dos primeiros coletivos de formação do MST, gaúcho de Palmeira das Missões e de nome Paulo Cerioli.
A sabedoria deste homem, ele mesmo filho de agricultores, ajudou a ver este problema de fundo. Em seus trabalhos, anônimos e sem assinatura, Cerioli busca a associação cognitiva, combinando diversos elementos e recursos. Tudo importa e é feito para facilitar a absorção de um volume de conceitos e cargas de informação indigestas para quem não está habituado na política. E, ainda assim, mesmo com todos estes cuidados, muitas vezes se absorve no máximo 30% daquilo que entra em pauta.
Considerando o narrado acima, fica uma profunda dúvida de qual o real impacto para a democracia de um debate como o de domingo último? Ressalto que defendo a importância dos debates diretos e tenho a opinião de que a presença dos candidatos deveria ser obrigatória. Ainda assim, a incógnita continua no ar.
Isto porque, sem a absorção dos números, das acusações com ou sem provas empíricas e materiais, das obras feitas, inconclusas ou sequer iniciadas, tudo fica no ar. Não podendo provar nada, o efeito do debate deriva para a teatralização da política. E, em se tratando de emoções, mais vale o afeto do que a idéia realizável, por mais que as idéias sejam movidas por paixões.
Indo além da pirotecnia de Luiz Inácio da Silva e de Geraldo Alckmin, a bem da verdade, o primeiro debate teve tudo menos conteúdo ideológico. Não falo isso com regozijo e sim com lástima. Fora da ideologia, das ideologias, só resta à aplicação técnica das idéias pré-concebidas por outros. Ou seja, fora do debate ideológico aplicável, só resta à aplicação das ideologias já existentes, dotadas de ares de verdades irreversíveis.
Na política como na vida real, toda verdade irreversível nada mais é do que uma etapa a ser superada, ou então, uma estrutura a ser rompida. O debate pirotécnico é próprio da democracia delegativa, indireta e representativa. A discussão ideológica franca e direta necessita de bases sociais mobilizadas como força motriz. Portanto, este debate pertence à outra modalidade de regime político democrático, participativo, direto e deliberativo.
Ao desligar a TV domingo à noite, me dei conta, mais uma vez, de quanto estamos longe desta outra forma de democracia.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat