Nestas barrancas, o povo do Rio Grande desenvolveu tecnologia e conceitos operacionais, postos em prática contra nossos maiores inimigos de então.

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Nestas barrancas, o povo do Rio Grande desenvolveu tecnologia e conceitos operacionais, postos em prática contra nossos maiores inimigos de então.

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3ª, 28 de novembro de 2006, Vila Setembrina dos Farrapos, Continente de São Sepé

O Brasil tem a triste sina de reproduzir, através da indústria de signos e sentidos chamada grande mídia, uma série de conceitos perfeitamente falsificáveis. Um deles, sempre em voga quando se negociam postos e funções no sistema de espólio pós-eleitoral, é o famoso conceito de “governabilidade”. Esta seria, em tese muito distante da realidade, um equilíbrio de forças dentre os agentes do sistema político.

Seguindo a governabilidade dentro do ambiente estritamente político – como se isto fosse possível – viria um segundo equilíbrio. Isto é, uma distribuição mais ou menos eqüidistante de possibilidades entre os interesses representados e as instituições correlatas do Estado e da sociedade. Em termos chulos, a governabilidade à la brasileira se caracteriza por duas funções:

– a capacidade de “canetear” uma lei, ou medida-provisória, ou qualquer interesse direto transformado em algo mais ou menos legal;

– a guaiaca forrada, os bolsos cheios; ou seja, a dotação orçamentária.

A segunda capacidade se aplica na correlação de forças na interna do ambiente brasileiro e restringida pelos devidos contingenciamentos proporcionados pelo governo do Copom e o dono da chave do cofre do caixa único do Tesouro Nacional. Este, mantendo o padrão histórico, segue aberto aos juros promovidos pelas instituições financeiras assim como os ingleses no início do século XIX abriram nossos portos para as “nações amigas”.

Na origem de tudo, está a mentalidade colonizada. A política brasileira incorpora ciclicamente os jargões advindos do receituário conceitual aplicado nos países de capitalismo central. Inúmeros conceitos chegam aqui da mesma forma que as caravelas e os navios negreiros. Como é sabido, nem os invasores lusos nem os seqüestrados africanos vieram para a Terra de Santa Cruz a passeio. Com a carga conceitual “importada”, o procedimento é o mesmo.

O que se produz de “científico” nos países centrais tem a capacidade de impor-se como “universal”. Já os saberes incorporados na universidade da periferia e semi-periferia do sistema mundo é taxado pela metrópole de: regional, local, conteúdo “complementar”, exótico dentre outras caracterizações colonialistas.

Ao incorporar conceitos de forma indiscriminada, as elites dirigentes e acadêmicas nacionais proporcionam o aumento da esquizofrenia de nosso sistema político. Afinal, o conceito só é conceito se for operacional. Como já afirmei aqui seguidas vezes, o conjunto do corpo conceitual pode ser comparado a uma caixa de ferramentas. Estas têm de ser sempre apropriadas às manualidades e a técnica, que aplicadas nas necessidades, geram a primeira forma de tecnologia.

Se uma ferramenta não serve para trabalhar, então qual será sua serventia? Seguindo na analogia, se um conceito não se aplica em nenhum caso de nossas sociedades brasileiras, para que incorporá-lo como forma de análise? A resposta, por incrível que seja, é o fato do conceito não existir para ser conceito e sim como afirmação de elemento de discurso.

Desenvolvendo esta idéia, imaginemos um aparato tecnológico sem condições de ser aplicado no parque industrial de nosso país. Mas, ao mesmo tempo, esta forma do estado da arte da tecnologia específica, tem como função básica de quem o produziu afirmar a distância entre centro e periferia do sistema mundo. Assim, o tipo-ideal é marcado pelas idealizações de terceiros, outros, não por coincidência, os maiores interessados e responsáveis de nosso próprio atraso tecnológico.

Os reprodutores desta idealização desejável são aqueles com a mentalidade de metrópole, atuando como “maquiadores” do pensamento central nos países receptores da “ciência”. Em um trabalho clássico de Guerreiro Ramos, ele próprio um dos troncos de sociologia autóctone, caracterizava estes “sábios” de esquizofrênicos. Segundo Guerreiro, a esta parcela de elite local cabe cumprir um duplo papel. Numa das pontas, eles e suas redes de lealdades e interesses fazem o elo entre os mundos. Trazendo em alto e bom som, no idioma e na lógica lingüística do invasor, a mentalidade a ser incorporada. Na ponta de lá, são meros reprodutores de terceiro escalão, úteis em áreas de interesses dos capitais transnacionais cruzados e suas agências e fontes de financiamento.

Na ponta de cá a função é de coronelismo e feitoria do pensamento brasileiro e latino-americano. Reproduzindo uma a uma das idéias-guia do novo pensamento único, repetindo em todo o momento a máxima de Dama de Ferro, Margaret Thatcher: “Não há alternativa!”, dizia a 1ª ministra do Partido Conservador ainda em 1979.

Estes operadores intelectuais defendem a morte a inserção subordinada do Brasil e da América Latina ao sistema mundo. Afirmando isto, manifestam sua própria característica de pensamento dual, subordinados fora do país e subordinantes em territórios já antes invadidos por Borba Gato, Jerônimo Leitão, Nicolau Barreto, Domingos Jorge Velho, Bartolomeu Bueno da Veiga (o Anhanguera) dentre outros “heróis” do Brasil bandeirante.

Como nem tudo é derrota para os brasileiros, os bandeirantes de Domingos Calheiros foram derrotados na batalha fluvial de Mbororé, nas 11 voltas do Rio Uruguai. Comandava a guerra o cacique guarani Inácio Abiaru, usando tecnologia própria, adequando os canhões não ao ferro fundido, mas nos troncos de urundi.

Na mesma lógica das bandeiras de corsários nas entradas além Tordesilhas funciona a aplicação das máximas do pensamento único no Brasil atual. O acionar é o de saquear a riqueza local e transformar nossas identidades próprias em complexos de bastardos. Isto ocorre ao aplicar sem senso crítico algum a toda a bula das especialidades referenciadas no neoliberalismo nas áreas da política, gestão pública, economia política, política econômica e tudo o que tiver relação com a “governabilidade”.

Por momentos a política brasileira cansa o analista. Mais estimulante é oferecer vara, caniço e rede do que fazer um arrastão de peixes a cada semana. A analogia conceitual e a discussão de governabilidade são decorrentes da postura de Luiz Inácio em promover um “governo de coalizão”. Convido a todos a continuar a ler o Noblat e se informar em detalhes das manobras de bastidores dos quatro PMDBs nacionais que se movem à espreita do botim do Planalto. Ou, ainda nesta mesma fonte, saber se o salário dos juízes do STF já atingiu os R$ 30.000,00 mensais.

Quanto aos temas de fundo e de fôlego, antes de iniciar o debate é preciso desconstruir as “idéias pensáveis” do receituário de baboseiras neoliberais que poluem nossas mentes. O artigo acima é parte deste esforço de pensamento nativista e popular.

Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat

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