O livro de Fábio López López, economista de formação e autor com trajetória militante e preocupação teórica intensa, pode ser considerado o novo clássico do anarquismo brasileiro. Elaborado na segunda metade da década de ’90 e publicado em 2001, marca o avanço teórico e político da ideologia no Brasil a partir de sua militância. Leitura indispensável. - Foto:achiame.com
O livro de Fábio López López, economista de formação e autor com trajetória militante e preocupação teórica intensa, pode ser considerado o novo clássico do anarquismo brasileiro. Elaborado na segunda metade da década de ’90 e publicado em 2001, marca o avanço teórico e político da ideologia no Brasil a partir de sua militância. Leitura indispensável.
Foto:achiame.com

Felipe Corrêa

“Para uma Teoria Libertária do Poder” é uma série de resenhas elaboradas sobre artigos ou livros de autores do campo libertário que discutem o poder. Seu objetivo é apresentar uma leitura contemporânea de autores que vêm tratando o tema em questão e trazer elementos para a elaboração de uma teoria libertária do poder, que poderá contribuir na elaboração de um método de análise da realidade e de estratégias de bases libertárias, a serem utilizadas por indivíduos e organizações.

Neste quinto artigo da série, utilizarei para discussão o livro, de Fábio López López, Poder e Domínio: uma visão anarquista, publicado em 2001, como resultado de reflexões militantes ligadas ao contexto de desenvolvimento do anarquismo de matriz especifista que, naquele momento, desenvolvia-se no Rio de Janeiro, assim como no resto do país. É relevante mencionar que o livro, como colocado pelo próprio autor, é feito por um militante voltado para a militância e, portanto, não tem a intenção de ser um trabalho acadêmico. O que não impede ele de trazer diversos elementos conceituais e argumentações relevantes, que podem contribuir significativamente para o objetivo desta série. Como nos outros artigos, seguem apresentadas, também esquematicamente, as principais contribuições do autor.

BASE FILOSÓFICA: NIETZSCHE E FOUCAULT

López acredita que para se formular uma teoria do poder é necessário abandonar as discussões sobre natureza humana, consideradas por Reich apenas “passatempos filosóficos”. Não haveria como descobrir os sentimentos e comportamentos inatos do ser humano, já que é impossível separar indivíduo e sociedade, e, conforme considera, impossível desvinculá-los das relações de poder: “um bebê já nasce enredado em uma série de relações de poder”.[p. 15] Não haveria, assim, resposta para as perguntas: o homem, em sua essência, é bom ou mau? Tende à cooperação ou à competição? Possui uma tendência natural à dominação? López critica as abordagens que buscam chegar a posições conclusivas acerca dessas questões. Para ele, a humanidade é forjada por suas relações de poder e os homens e mulheres, indivíduo e sociedade, só podem ser pensados dentro dessas relações de poder, sendo impossível recorrer às questões de inatismo e às discussões sobre natureza humana para compreendê-los.

Independente da relação pontual com outros autores, a base filosófica do trabalho de López é nietzcheana/foucaultiana, cujos argumentos fundamentais discuti no terceiro artigo da série sobre o pensamento de Foucault. Ainda assim, retomarei brevemente esses argumentos que dão sustentação a toda sua teoria.

Incorporações de Nietzsche

A obra de Nietzsche sobre a qual se baseia López é, fundamentalmente, A Vontade de Potência [traduzida mais recentemente como A Vontade de Poder], da qual cita diversos trechos para se fundamentar teoricamente. Sem aprofundar, os principais argumentos incorporados da teoria nietzscheana são os seguintes: o mundo é a força, e assim, a constituição do mundo, da vida, da realidade, só pode ser o resultado de uma interação entre forças determinadas, a qual forja suas principais características; essas forças são finitas, mutáveis e temporais, dividindo-se em diversas partes que, em conflito, estabelecem relações de predominância e constituem um todo; o indivíduo é um centro de força; a motivação da vida é o acúmulo de força, a liberdade do potencial e a vontade de potência que estão dentro de cada um; não há uma finalidade do mundo, da vida ou da realidade, que possa ser prevista ou avaliada em termos de evolução, e, assim, a humanidade não caminha para um sentido determinado; buscando sua realização, o indivíduo utiliza o poder como meio; a moral tem condições de determinar essa vontade de potência e pode transformar desejos e emoções, castrando, docilizando e degenerando o ser humano no que diz respeito a esse seu impulso para a potência.

Incorporações de Foucault

De Foucault, López se baseia na coletânea Microfísica do Poder, também citada na costura de seus argumentos. Novamente sem aprofundar, seguem os principais argumentos incorporados da teoria foucaultiana: o poder se dá para além do âmbito do Estado e não pode ser considerado simplesmente como reflexo das relações econômicas e nem somente em termos de repressão; as relações de poder, que também são produtivas, se dão por meio das diversas relações de forças, e o poder envolve a ativação e o desdobramento dessas relações.

PODER

Agente social, força social e capacidade de realização

O trabalho de López restringe-se ao campo social e, portanto, concebe o poder a partir de uma perspectiva de relação social; assim, distingue-se da concepção de Nietzsche, que considera qualquer produção uma relação de poder. Restringindo-se ao campo social, López concebe um modelo que parte das noções de força social e agente social.[1]

* Força social: “energia racionalmente aplicada pelos agentes na consecução de seus objetivos na sociedade”.[p. 60]

* Agente social: “qualquer ser humano que viva em sociedade, tenha capacidade de desejar, escolher e agir”.[Ibid.]

“Todo agente social é dotado naturalmente de uma determinada força social.”[Ibid.] É relevante enfatizar que, para López, a sociedade não é a mera soma dos agentes sociais tomados individualmente; para ele, o coletivo é muito mais complexo que a soma dos indivíduos. Dessa maneira, a força social não pode ser compreendida como soma das forças sociais individuais dos agentes. A força social presente em todos os agentes sociais varia de um agente para outro, num mesmo agente durante um período de tempo e em relação ao projeto no qual ele está engajado. Ela varia também quando vários agentes se associam em torno de um objetivo comum, sendo a força social desses agentes associados, sempre maior que a soma das forças individuais de cada agente. Essas premissas distinguem o método de López dos métodos individualistas e/ou liberais.

Para alcançar seus objetivos, os agentes sociais se valem de diversos instrumentos para a ampliação de sua força social: “um armamento simples (como uma faca ou revólver), informação, aumento de força física, aprimoramento de técnica de luta, saber e experiência para melhor atuar (otimização na aplicação das forças que dispõe), erudição (para ter maior capacidade de persuadir), ou uma máquina que aumente a produção do trabalho. Porém, como veremos mais adiante, os instrumentos mais importantes são a associação e o domínio.”[Ibid.] O ganho de influência também é uma maneira de se aumentar a força social, pois o “agente que consegue influência, tem força social”.[p. 77]

“Uma força social tem determinada capacidade de realização.”[p. 61]

* Capacidade de realização: “possibilidade de produzir determinada força social, quando colocada em ação pelo agente que a detém”.[Ibid.]

Com base nessa definição, López enfatiza que, muitas vezes, o poder é definido como capacidade de realização. Para ele, são conceitos distintos, já que a capacidade coloca-se no campo de uma possibilidade, e o poder, como se verá, implica mais do que isso. O poder, segundo sustenta, exige a capacidade de realização, mas também que essa capacidade seja transformada em força social, ou seja, que seja aplicada praticamente, saindo do campo da possibilidade e tornando-se realidade. “Capacidade de realização pode ser entendida como a possibilidade de produzir de determinada força social, quando colocada em ação pelo agente que a detém. É muito importante esta definição, uma vez que a ‘capacidade de realização’ é constantemente utilizada como sinônimo de poder. Ou seja, quando um agente tem a capacidade de realizar ou produzir determinado efeito, se diz que ele tem poder.”[Ibid.] Ao mesmo tempo em que discorda da definição do poder como capacidade de realização, López também discorda da definição que equipara poder e força social: “Poder não pode ser mero sinônimo de força social, pois para ter poder é necessário fazer uso de sua força e ela ter efeito – ou ao menos poder fazer uso desta força (quando lhe convier) e isto ser o suficiente para conseguir o efeito.”[p. 62]

Assim, pode-se dizer que os agentes sociais são dotados de capacidade de realização e quando esta capacidade é colocada em prática, aplicada pelos agentes na busca de seus objetivos, a capacidade de realização torna-se força social. Todos os elementos colocados – agente social, capacidade de realização e força social – são fundamentais para o poder, ainda que o poder não possa ser definido exclusivamente por nenhum deles especificamente.

O conceito de poder

López apresenta uma definição bastante clara de poder.

* Poder: “imposição da vontade de um agente através da força social que consegue mobilizar para sobrepujar a força mobilizada por aqueles que se opõem”.[p. 62]

Articulando o conceito de poder com os conceitos definidos anteriormente, pode-se dizer que o poder é resultado da interação entre forças sociais mobilizadas e colocadas em prática por agentes sociais dotados de determinada capacidade de realização. Ao se falar em forças mobilizadas e colocadas em prática, considera-se também “a possibilidade do uso da força”[p. 64], ou seja, a ameaça de uso da força, que termina funcionando como um elemento constitutivo das forças em jogo – muitas vezes causando receio ou medo em agentes –, permitindo que o poder seja estabelecido.

Logo, a definição de poder de López fundamenta-se em um modelo de conflito social:

* Conflito social: “enfrentamento entre as forças sociais mobilizáveis por […] agentes”.[p. 62]

Considera-se que o poder é resultado das forças sociais em jogo que se enfrentam constantemente em um modelo de conflito social, já que “só existe relação de poder se houver conflito”.[p. 63]

O poder é sempre uma relação social, “localizada no espaço, tempo e na sociedade”, que não pode ser compreendida como sinônimo de repressão, já que “o poder constrói, o poder cria, o poder articula e estrutura toda a sociedade. Sempre em favor de quem o detém” [pp. 61-62]. Isso não implica que o poder seja sempre dominador ou antipopular; no entanto, as relações de poder são responsáveis por forjar lógicas e dinâmicas e, portanto, não são neutras e, dependendo de como estiverem instituídas, podem servir ou não a fins igualitários e libertadores. “O poder não pode ser encarado como mero instrumental através do qual se pode alcançar qualquer objetivo. Poder é uma relação social com lógica e dinâmica própria, que constitui a sociedade e tem conseqüências sobre os indivíduos. O poder não é neutro. Ter poder significa oprimir, impor, conquistar, criar uma situação de desigualdade, onde a parte que sofre a ação do poder será frustrada em suas pretensões.”[pp. 70-71]

Assim, pode-se afirmar que o poder: a.) sempre se localiza histórica e geograficamente, no tempo e no espaço; b.) conta com a repressão, mas nunca se resume a ela, já que é, fundamentalmente, criação, articulação, estruturação; c.) ainda que não seja necessariamente antipopular ou dominador, ele também não é neutro.

Em uma dinâmica de conflitos, o poder existe quando determinada(s) força(s) social(is) se sobrepõe(m) a outra(s), tendo como resultado poderosos e subjugados.

* Poderoso: agente social que exerce a relação do poder, sendo sua força “mais forte socialmente do que sua oposição”.[p. 68]

* Subjugado: “todo agente social que sofre contra si uma relação de poder, pois sua força social é débil no embate com a outra”.[p. 67]

Os poderosos podem ser os agentes responsáveis por relações de poder que implicam ou não a dominação, o que será discutido mais adiante. Os subjugados dividir-se-iam em dois grupos: os dominados, que depois do poder estabelecido “acabam trabalhando em prol dos interesses do poder”, e os resistentes, “que não trabalham naquilo que se opõem”, ou seja, mesmo sendo subjugados na relação de poder continuam a desenvolver seu trabalho no sentido de resistir ao poder vigente e, quem sabe, modificar a correlação de poder, continuam a desenvolver seu trabalho no sentido de resistir ao poder vigente e, quem sabe, modificar a correlação de forças ou a própria relação de poder. Independente do tipo de subjugado, ele sempre “sofre uma opressão”.[Ibid.]

* Opressão: “oposição unilateral de uma das partes de um determinado relacionamento – é conseqüência necessária da relação de poder”.[Ibid.]

No caso dos subjugados resistentes, eles assim se caracterizam por serem agentes cuja força social, apesar de subjugada, e os agentes, apesar de oprimidos, não deixam de continuar a atuam em favor de seus próprios objetivos.

* Resistência: “força subjugada” em uma determinada relação de poder que “não deixa de existir”[p. 67] permanecendo como “oposição em conflito”.[p. 86]

A resistência caracteriza-se, portanto, pelo dinamismo do conflito social sendo que, ainda que estabelecida uma relação de poder, as forças sociais continuam em jogo e os agentes resistentes permanecem lutando pelos projetos que estão de acordo com seus próprios interesses, mesmo estando subjugados naquele momento. As forças sociais da resistência, ainda que haja opressão, não deixam de existir e de se contrapor às forças poderosas. Para López, a resistência pode ser tipificada da seguinte maneira: “a resistência pode ser passiva (quando o agente não tem qualquer ação contra o poder que o oprime) ou ativa (quando o poder sofre retaliações por parte dos subjugados), isolada (tem um caráter individual) ou articulada (força coletiva)”.[p. 75] Levando em conta que a resistência também pode ser passiva, pode-se dizer que a resistência sempre está presente nas relações de poder. A resistência ativa, distintamente, manifesta seus interesses por meio da forças sociais de determinados agentes. Seu caráter individual ou articulado possui uma implicação direta no quantum de força social aplicada na relação. Não sendo a força social coletiva a simples soma das individuais, a resistência articulada possui sempre maior capacidade de realização que a soma das resistências isoladas.

A dinâmica do poder

A partir do conceito de poder estabelecido e das categorias elaboradas por López, pode-se tratar de alguns aspectos relevantes da dinâmica do poder. Há três leis fundamentais do poder, que aprimoram a explicação desse seu funcionamento: 1. “Quando existe um conflito onde duas forças disputam o controle de um único objeto, a guerra só cessará quando se estabelecer uma relação de poder.” 2. “Quando existe conflito, mas não vemos guerra – ou seja, em tempos de ‘paz’ – se o agente não estabeleceu poder, seu opositor terá estabelecido.” 3. “Sempre, o agente que empenhar maior força social em determinado conflito até aquele momento histórico, será o detentor do poder.” [p. 63]

Essas leis explicam alguns fundamentos das relações de poder. Compreendendo o poder como relação entre forças sociais, López toma por base os conflitos que envolvem disputa entre duas forças para o controle de um objeto. Nesse caso, a situação de guerra e paz é determinada pelas relações de poder; quando há guerra – embate efetivo, conflitos evidentes em torno de uma disputa –, esta só deixará de existir quando uma força se sobrepõe a outra; quando há paz, significa que essa relação entre as forças já se estabeleceu. No primeiro caso, cessa a “guerra” quando se estabelecer uma relação de poder, no segundo caso, a “paz” significa que essa relação já estabeleceu. López também argumenta que num conflito que envolve a disputa de um objeto por duas forças, ocorrendo a “paz”, ou seja, se estabelecendo uma relação de poder, se um dos lados não tiver estabelecido a preponderância de sua força, o outro necessariamente terá; afirmação que implica não ser possível conceber uma relação de poder sem forças sociais que exercem esse poder (levadas a cabo por agentes poderosos) e forças sociais que são oprimidas por ele (levadas a cabo por agentes subjugados). Numa relação de poder, há sempre aqueles que o exercem e aqueles que sofrem seus efeitos. No tipo de conflito mencionado, a maior força social aplicada na disputa terá como resultado tornar os agentes que as exercem poderosos. Dessas leis do poder, López extrai a conclusão de que “quem tem mais força social se impõe sempre, logo é o detentor do poder”.[p. 65]

López aponta outro elemento importante, que diz respeito à lógica expansionista do poder, caracterizada como “contínua e sistemática tentativa, por parte do poderoso (ou daquele que almeja o poder), de maximizar a apropriação de força social […] para obter a expansão do quantum de força social original”.[p. 68] Levando em conta o dinamismo das relações de poder, sendo que elas só podem ser consideradas dentro de uma relação no tempo e no espaço, torna-se necessário, para que o poder assegure sua continuidade, garantir uma ampliação constante de força social, para o caso de a resistência estar também acumulando forças. Assim, os agentes poderosos devem ter permanentemente a preocupação de aumentar sua força social, de maneira a garantir que sua posição na relação de poder, com o passar do tempo, não seja modificada, por razão de um acúmulo de forças da resistência. A lógica expansionista do poder constantemente faz com que detentores do poder façam da busca por esse aumento de força seu principal objetivo. “Os detentores do poder (ou os que lutam por ele) estão eternamente tomando atitudes (pretensamente de curto prazo) para expandir sua força social, a fim de manter (ou conquistar) poder.”[p. 71] [2] A lógica, como se vê, aplica-se também àqueles que têm por objetivo conquistar o poder. Subjugada em uma relação de poder, a resistência terá de manter um esforço permanente em relação ao aumento de sua força social, se tiver por objetivo modificar a correlação das forças em jogo e, portanto, o poder.

A lógica utilizada na conquista ou na manutenção do poder, afirma López, é a de sempre buscar os objetivos a partir “do menor esforço ou custo possível”.[p. 73] Tal afirmação, evidentemente, considera uma lógica de otimização na utilização de recursos, que permite não comprometer forças desnecessárias na disputa por um determinado objetivo.

* Fábio López López. Poder e Domínio: uma visão anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2001.

Notas:

1. Uma das características do texto de López é a quantidade de conceitos criados e utilizados, os quais contribuem para a compreensão mais clara de sua proposta. Para que o leitor não os perca, destacarei sempre esses conceitos no corpo do texto.

2. Dessa forma, os objetivos de “longo prazo” que os partidos políticos dizem buscar acabam caindo no vazio, uma vez que suas ações práticas, quando estão na condução do Estado, são majoritariamente voltadas para a perpetuação de seu controle.

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