Por Bruno Lima Rocha

O país que está à direita do ENEM

No fim de semana de 20 e 21 de outubro, o país realizou o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Nesta avaliação universal que pode dar acesso a universidades públicas e privadas, ao menos três questões chamaram a atenção da direita mais ideológica. Destas, a que mais chamara atenção da UDN pós-moderna e o novo obscurantismo na era da internet partiu de uma frase consagrada da existencialista Simone de Beauvoir: “a mulher não nasce mulher, se torna mulher”. Outras duas questões tinham como base citações do maior geógrafo da história brasileira, Milton Santos, e outra, um poema do líder da libertação de Angola, Agostinho Neto. Atenderam ao ENEM mais de sete milhões de pessoas, a imensa maioria composta de jovens entre 15 e 20 anos. Assim, ao menos uma boa parcela de estudantes em idade formativa esteve exposta a temas políticos fundamentais para a compreensão de temas contemporâneos.

A reação não se fez por esperar. Na segunda feira dia 22 de outubro os comentaristas de sempre, em escala nacional e nos estados já gritavam acerca do caráter “bolivariano” do Exame. Sinceramente, não vi bolivarianismo algum, apenas a sintonia com temas do presente, considerando que estamos vivendo há mais de uma década onde há uma sincronia de duas tímidas políticas: as compensatórias e as do reconhecimento. Ideologicamente, o pacto do lulismo é conservador, e se formos observar em detalhe os dirigentes históricos do PT vinculados a este projeto temos uma enorme incidência de gente corrompida, vivendo de luxúrias e com estilo vida semelhante aos antigos adversários políticos e inimigos de classe quando o ex-sindicalista que segundo ele mesmo nunca foi de esquerda ainda agitava a luta dos trabalhadores. Ainda assim as tímidas políticas compensatórias e de reconhecimento atiçaram às elites brasileiras ecoando no conservadorismo de toda ordem, incluindo a legião de neopentecostais a professar a Teologia da Prosperidade e o Conservadorismo Moral. Não tardou para a luta das mulheres passar a ser alvo permanente das várias UDNs e TFPs pós-modernas recheando a internet brasileira.

No período logo após o Enem tivemos fatos midiáticos que resultaram em fatos políticos. No interior de São Paulo, um promotor chama “Simone de Beauvoir” de “baranga” e relaciona sua posição com o fato de ser – em tese e como se isso importasse – pouco atraente aos homens. Na mesma sequência, o eterno demente reacionário Danilo Gentili veicula em rede nacional e compartilha um de seus comandados fazendo uma verdadeira ode misógina simulando uma redação perfeita para tirar 10,0 no Enem. A semana culmina com a postagem de um admirador rio-grandense de Gentili fazendo bravatas na internet e agindo como provocador na 1ª Feira do Livro Feminista e Autônoma de Porto Alegre.

Esta última provocação fez parte de um enredo ainda mais agressivo que terminara com a Brigada Militar tentando retirar as militantes de uma praça que ocupavam para ensaiar esquete teatral a ser encenada na Feira do Livro de Porto Alegre no dia 02. Após a covarde agressão, a intervenção na Feira do Livro – no centro da capital gaúcha – foi uma marcha de resposta e repúdio, sendo que no dia seguinte, 03 de outubro, centenas de mulheres foram em marcha ao Palácio Piratini (sede do Poder Executivo estadual) repudiando a repressão da polícia militar. Definitivamente, o conflito de 4ª geração no ambiente interno de um país está marcado pela condição de postar e distribuir conteúdos de distintos formatos e alinhando-se com uma causa ou pela reação a esta causa.

Eduardo Cunha caminha para o cadafalso, mas o transe reacionário continua

Está instaurada pelo Conselho de Ética da Câmara a investigação para apurar se Eduardo Cunha (PMDB-RJ) incorreu na quebra de decoro e logo, pode vir a ser cassado pelos pares. Tudo bem que o requerimento foi iniciativa das bancadas da REDE e do PSOL, o que de cara anuncia escassez de votos, mas isso pode ser usado para acuar ou o cardeal líder do baixo clero, ou fazer com que as avançadas pouco republicanas de Cunha coloquem o governo de Dilma (ou o que deste resta) contra a parede. Para Lula – agora alvo direto da Operação Zelotes através de sua família – tal como era da Lava-Jato – a mesma operação que pegara as contas de Cunha na Suíça – isto vem a calhar, obrigando a mídia de porte a tirá-lo um pouco da vitrine, apesar das recentes capas das revistas semanais Veja e Época.

Meu temor neste momento não é Cunha cair – se for, já vai tarde de onde nunca deveria haver estado – mas justamente esse requerimento operar como uma operação de bombeiro para os escândalos do governo. O maior dano já está feito, tanto da parte de Cunha como do pacto lulista. O primeiro anuncia em alto e bom som que é contra as políticas compensatórias e de reconhecimento promovidas, de forma tímida e por vezes envergonhada, pelo pacto do lulismo. Já o próprio pacto, é inclusivo, mas conservador, logo, opera como reforço dos valores do sistema, empurrando mais de 40 milhões de brasileiros para o justo mundo dos direitos mas também para o universo do capitalismo de consumo suntuoso. Isso sem estabelecer as bases de desenvolvimento necessário para alcançar o longo prazo. Resultado: agora que o modelo entrou em crise de fim de ciclo, o cinto aperta um pouco e todos nós estamos como mareados, mesmo para quem está à esquerda do governo como é o caso deste que aqui escreve.

De todas as maneiras, com ou sem o aproveitamento tático por parte do lulismo e de seus sócios mais diretos – a banca e as empreiteiras, sócios majoritários de quase todos os governos a primeira, e eleitos campeãs nacionais as segundas – somente e tão somente por um de seus vários projetos de lei já valeria a pena cassá-lo por oito longos anos e cortar a cabeça da serpente de quem tem cara e preparo para falar na Câmara pelo pior do Brasil, a Bancada conjunta BBBB (Bíblia-Boi-Bala-Bola). Eduardo Cunha é o autor do Projeto de Lei 5069 de 2013, alterando a Lei 12,845, que na prática, autoriza a pílula do dia seguinte para o caso de estupro. Como a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou o andamento do PL de Eduardo Cunha, nós estamos diante de um elogio indireto à violência de gênero, autorizativo do aborto na prática.

Com essa e mais uma série de estripulias neoconservadoras – como o modelo de família, a campanha contra o que acusam ser a “ideologia de gênero”, Eduardo Cunha consegue estar à frente de gente do quilate de Marco Feliciano (PSC-SP) e do viúvo da ditadura capitão Jair Bolsonaro (PP-RJ). Com esta capacidade de liderança, já tivemos o golpe da PEC da Redução da Maioridade Penal através de uma manobra parlamentar digna de um fabricante profissional de salsicha (na madrugada de 2 de julho de 2015), além da mesma Emenda haver tramitado já positivamente na CCJ do Senado. O mesmo ocorrera com o PL das terceirizações (PL 4330/2004). Cunha botou para andar a pauta mais horrenda do Brasil e o trator continua devastando os direitos constitucionais. A última veio através do genocídio institucional, com a aprovação da Comissão Especial de Terras Indígenas a PEC de Omar Serraglio (PMDB-PR) que dá a potestade para o parlamento da última definição das terras ancestrais dos povos originários.

A atual Legislatura não para por aí. Na 4a dia 28 de outubro, o Senado aprovou o substitutivo do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), que não exclui o protesto social do crime de “terrorismo”. Como o texto veio da Câmara com essa especificação – na prática garantindo os direitos constitucionais ao protesto social – agora Cunha pode manobrar à vontade fortalecendo sua posição de barganha junto ao governo.

O transe reacionário vai continuar e a ex-esquerda já se perdeu pelo caminho

O transe reacionário e inflexão do governo à direita do que fora prometido no segundo turno da campanha presidencial de 2014 fez do país um celeiro do pior do conservadorismo somado a ataques neoliberais de todos os lados. Para uma política profissional como a nossa, Eduardo Cunha torna-se espelho de seus pares. Já o pacto lulista e seus operadores líderes, passaram dos limites da quebradeira ideológica, vivendo em propriedades de terceiros e com formas de vida nababescas para quem vem de origem assalariada. Nunca a esquerda brasileira foi tão refém de seus hábitos, havendo incorporado as malditas formas de vida dos antigos adversários e inimigos de classe. Temos um longo caminho pela frente para reconstruir a ideia de democracia por esquerda – direta obviamente – e uma luta tática importante para confrontar este reacionarismo crescente no país.

 

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