20 de julho de 2009, da Vila Setembrina outrora farrapa, Bruno Lima Rocha
Duas perguntas são urgentes na análise do golpe oligárquico e nos intentos de contragolpe popular em Honduras. Uma, diz respeito saber os porquês de Manuel Zelaya haver aceitado a intermediação do presidente Oscar Arias (presidente da Costa Rica e títere do Departamento de Estado nesta crise) e haver-se comprometido a aceitar o pacto de transição quando de seu retorno ao país de origem? Particularmente, desde o começo do golpe venho dizendo – de longe e com informação indireta – que, se as regras da política são válidas para qualquer conjuntura, então por A + B era provável (com mais de 70% de probabilidade) que Zelaya não seria nada confiável. Ou seja, que o ex-oligarca convertido se iria reconverter as posições de origem e tratar de salvar a si, a sua carreira política e aos seus bens em território hondurenho. Definitivamente, Manuel Zelaya Rosales não é um líder do Continente. É apenas um presidente com cabeça de bananero cujo tapete puxaram.
Podemos nos questionar porque os processos de câmbio carecem tanto assim de líderes carismáticos? Entendo que isso não é “natural” na política, mas que há maior incidência desse tipo de liderança em nosso Continente. Admitamos que nós, latino-americanos, estamos propensos a referendar líderes e próceres até os dias de hoje. Mas, para ser uma liderança legítima e carismática, que se posiciona à frente do povo organizado, este indivíduo tem de dar exemplo. José Gervasio Artigas, líder federalista da primeira revolução social na política moderna do Cone Sul, morreu pobre e exilado. Viveu em uma modesta residência entre 1820 e 1850, em uma casa na beira do rio, em Assunção do Paraguai, país na época governado pela ditadura do Gaspar Rodríguez de Francia. Esta também foi a sina de Simon Bolívar e de tantos outros mais. Não estou dizendo com isso que todos os líderes populares têm de viver o resto dos seus dias amargando um quarto de século de solidão. Afirmo que se não houver disposição de sacrifício então não há nada.
A contrapartida está onde sempre esteve, abaixo e à esquerda. Nas ruas e estradas de Honduras a resistência civil cresce a cada dia. As bases sociais mobilizadas dentro do país não encontram eco no governo que estão a defender. A representação social de Zelaya é outra, e ele como operador político está mais para Oscar Arias do que para um membro da ALBA. O Império bateu onde a guarda estava baixa, até porque o Pentágono precisa de vitórias, ainda que pontuais e episódicas. Temos de considerar que o modelo de democracia em Honduras caminhava para uma mescla entre democracia direta e mecanismo plebiscitário. Um processo dessa envergadura não poderia ficar a reboque de uma liderança fraca e recentemente convertida a uma causa que não era a sua. Era esperado que o gabinete do presidente deposto sentasse à mesa na posição subalterna, aceitando as propostas de Oscar Arias. Ou seja, se esperava a capitulação de quem nunca foi lá muito convicto.
A segunda pergunta é ainda mais direta
Se por um lado era esperado que Manuel Zelaya capitulasse cedo ou tarde, por outro, fica a questão: – Porque os golpistas encabeçados por Roberto Micheletti (originalmente correligionário de Zelaya) não aceitaram as propostas de “mediação”, transitando um governo de conciliação? A matriz explicativa que apresento compreende as lealdades entre golpistas, as dificuldades de negociação, o aval do Império para amolecer ainda mais a Zelaya e o medo de alguma punição das altas patentes que orquestraram o golpe de 28 de junho.
Existem sempre tempos distintos e arenas simultâneas em qualquer disputa política. Ao eleger uma arena preferencial em relação à outra, se definem os caminhos por onde trilhar. É da natureza de um governo constitucional quando derrubado, recorrer aos organismos internacionais ou de coordenação regional como a Organização dos Estados Amercianos (OEA). O gabinete destituído do político e oligarca convertido Manuel Zelaya, filiado ao Partido Liberal, apostou as fichas nas mesas de negociação, via pressões internacionais de todo tipo. Arrancaram até uma declaração de Barack Obama, frases ditas no calor dos primeiros dias pós-golpe. Na mesma maré de avançada diplomática, os países europeus retiraram suas representações diplomáticas do país centro-americano. Mas até agora ficou nisso.
Uma das regras da política diz que “governo não cai de podre, governo se derruba”. Roberto Micheletti encabeça como chefe de Estado de fato (e não de direito) a ilustração desse conceito operacional. Por mais pressão que venha de fora, do entorno, de além fronteiras, ninguém destitui um governo golpista que tem, aparentemente, a coesão das instituições de controle do Estado, apenas com palavras ou fatos políticos midiáticos. Em Honduras, a Suprema Corte, o Congresso (unicameral), o Estado-Maior das Forças Armadas (FFAA), as empresas de comunicação e as outras altas hierarquias apóiam abertamente o golpe cívico-militar. Para salientar a posição e o argumento, recordo que as corporações castrenses hondurenhas encarnam em sua própria existência a Escola das Américas, a começar pelo general comandante da ação do domingo 28 de junho, Romeo Vásquez Velásquez.
E o que isso implica? Significa que os mandos intermediários, como sargentos de velha guarda e suboficiais com experiência de combates reais, fizeram seu batismo de fogo agindo em esquadrões da morte, nas operações de contra inteligência, coordenados com a Contra nicaragüense, enfim, jogando como peças do tabuleiro do Departamento de Estado quando se aplicava na América Central a chamada Teoria do Dominó. A figura de linguagem é de fácil interpretação. Diziam os estrategistas do Império que uma região pobre, integrada e de pequena expansão territorial seria como uma fileira de dominó, caindo uma após outra, tomando como ponto de partida a vitória sandinista em 1979. A estratégia de Terra Arrasada (destruir a estrutura social-produtiva e ceifar de vida uma geração inteira) somada ao terror de Estado e do narcotráfico rendeu o empate militar em El Salvador (FMLN) e Guatemala (URNG) e a derrota política através da democracia indireta, liberal e representativa que colocou de volta a oligarquia, através de Violeta Chamorro, derrotando o então muito contestado e hoje presidente, Daniel Ortega (FSLN).
Os militares profissionais hondurenhos eram o pulmão de tudo isso. Estavam umbilicalmente vinculados, financiados, convencidos ideologicamente, acumpliciados em centenas de crimes de lesa humanidade e cumprindo o destino histórico de quem se contenta em ser bucha de canhão de uma república de bananas, vivendo a tirania oligárquica subordinada ao Império sob o manto de “democracia” liberal-burguesa.
Pois bem, essa gente obedece aos controladores de campo e as missões oficiosas do Comando Sul dos EUA, do Pentágono, do Departamento de Estado e aos operadores do Complexo Industrial-Militar, CIA e DEA incluídos. Esse tipo de gente não perde sua parcela de poder com “revolução de veludo”. Mais difícil ainda com uma liderança recalcitrante e com passado político pouco ou nada confiável. Os golpistas não aceitam a transição, não ao menos nos próximos dias, simplesmente porque até o momento, não vêem nenhuma ameaça maior à sua “governabilidade”. A alternativa para o contragolpe em Honduras é ação organizada da resistência civil. Além disso, o que existe é política performática e vacilação de liderança.
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos (IHU)