Por Bruno Lima Rocha
No sábado 26 de novembro de 2016, fiz uma crítica bem ampla e dura, dizendo que o ciclo dos arrivistas termina sendo a tumba da legitimidade política em qualquer situação. Obviamente me referi à procissão de papagaios de pirata do cadáver de Fidel.
Puxando da memória, recordei de algo que li há mais de vinte anos, uma trilogia belíssima de Eduardo Anguita e Martín Caparrós chamada La Voluntad. Nestes três tomos, a história da Argentina rebelde da terceira geração de peronistas e a segunda de guevaristas é narrada pelos protagonistas, pelos sobreviventes. Neste sentido, resguardando todas as comparações absurdas e bizarras, o enterro de Fidel Castro lembrou-me uma passagem do enterro de Juan Domingo Perón, em julho de 1974. Aos 78 anos, o general faleceu dia 1o de julho e a cerimônia durou mais de quatro dias.
Filas enormes se formaram e as mais de uma dezena de agrupações peronistas, tanto as de esquerda como a burocracia da direita das 62 organizações disputavam o simbolismo da data. Perón em vida já tinha lado (a direita), no fatídico comício de 1o de maio de 1974, quando o general em pessoa expulsou os Montoneros da Praça de Maio. Nestes dias do funeral do velho caudilho, o sangue corria ao redor da cerimônia.
Nas filas para ver o corpo no Congresso, filas estas de três dias inteiros, veteranos da resistência peronista observavam, estupefatos, de queixo caído, como os dirigentes Montoneros furavam a fila e, acompanhados de seus parlamentares, saudavam o chefe político que os expulsara, desrespeitando o rito igualitário do peronismo de base. Era o caso de Envar Cacho El Kadri (1941-1998), um dos fundadores das Forças Armadas Peronistas, legítimo representante da juventude peronista dos anos ’60 e pioneiro da resistência juvenil armada contra os militares, antes mesmo da Ditadura de Onganía em 1966. Segundo o relato, El Kadri não acreditou quando viu Mario Eduardo Firmenich e Roberto Quieto, dois membros da Condução Nacional Montonera, furar a fila e romper com o ritual da Juventude Peronista.
Pelos mesmos relatos, El Kadri era leal demais ao peronismo imaginário, aquele sem Perón e não estava nada confortável em ter de se contrapor à patota, aos corruptos, bater-se contra a direita peronista todos os dias e enfrentar os esquadrões da morte dentro do complexo movimento. Ainda assim, este militante respeitava os ritos e costumes do movimento,não se “destacava da massa”, e sim era mais um na barricada.
Perón não é um tipo reivindicável, não se compara em nada a Fidel Castro, mas era o Deus recém morto em 1974. Naquele momento, o conflito era entre a base perdida e os novos dirigentes que não respeitavam alguns rituais dessa própria base. A vida me deu privilégios políticos. Conheci montos de base, conheci perros de base, e todos eram militantes maravilhosos, dedicados, modestos e anônimos. Óbvio que o Kirchnerismo se aproveitou de sua imagem – de El Kadri – assim como de veteranos combatentes dos ’60 e ’70. Peço por favor que não os confundamos com o governo dos Kirchner.
Sobreviventes de uma Argentina que queimava viva a Juventude Gloriosa, merecem todo o respeito do planeta, e não podem ser substituídos por arrivistas de plantão, gente que não sabe o que é um bumbo e não treme de ódio ou pânico ao ver um carro Ford Falcon verde ainda circulando em Buenos Aires. O mesmo ocorre neste momento com a morte de Fidel Castro, incluindo seus críticos por esquerda, onde modestamente me incluo.
Isso não se faz nem na Argentina, nem em Cuba e em lugar algum do planeta.