13 de maio de 2010, da Vila Setembrina de Lanceiros Negros traídos em Porongos, Bruno Lima Rocha
Neste segundo artigo desta nova série de difusão científica abordamos o tema do arraigo e da incidência das propostas e da chamada cultura orgânica. Para tanto, é necessário destrinchar um conceito-chave, que elencamos como o de habitus, conceito esse formalizado por Pierre Bourdieu com tal denominação, mas cuja aplicação dá-se no Cone Sul da América desde, no mínimo, a década de ’20 do século passado. Este conceito, se aplicado para além do relevo de comportamentos aparentes, implica no domínio e inteligibilidade dos códigos das classes onde se está, a idéia de inserção social e o recrutamento adequado.
Cabe aqui uma nota explicativa. No texto citado de Bourdieu (1979, cap. 8), a referência do habitus é o da classe operária francesa do final dos ‘60 e início dos ‘70. Na série que aqui se apresenta, apontamos uma variedade de setores de trabalho porque o exemplo de partido a ser analisado não é o Partido Comunista Francês, como o faz Bourdieu, mas um modelo de partido a partir da flexibilização e desregulação das relações de trabalho, desenvolvendo-se em países latino-americanos, com índice alto (mais de 50% em muitos dos casos) de desemprego e economia informal.
Já o distanciamento do PC Francês também se dá por distintos motivos, sendo alguns deles: – a aceitação da linha do eurocomunismo o que equivaleu a afirmar durante a Guerra Fria na impossibilidade de um processo de acumulação revolucionária da Europa Ocidental do Pós-Guerra; – sua estrutura leninista e seu comportamento de conciliação de classes; – sua trajetória de conduta nefasta como força hegemônica do mundo do trabalho francês, salvo a rara exceção durante a Resistência Francesa; – enfim, seus próprios princípios teórico-metodológicos que, quando culminados em vitórias políticas, resultaram em ditaduras de inspiração marxista (sem liberdades políticas para as matrizes igualitárias, e tampouco liberdades culturais, étnicas ou religiosas), como foi o caso da União Soviética após a derrota das forças populares não-bolcheviques logo a partir da derrota militar do Exército Insurrecional dos Camponeses da Ucrânia, em 1921 (ver a referência bibliográfica).
Feita essa ressalva, apenas para citar que no texto de Bourdieu o parâmetro partidário não é aceitável no modelo aqui apresentado, seguimos. Vamos entrar em específico no tema da inserção social, tanto da instituição (organização política) como de seus operadores (quadros médios, militantes plenos). Entendemos que o tema do habitus também gera identidade e coesão. Tem relação, em sua maior parte, com as fontes de recrutamento e a inserção social. Por inserção entendemos como permanência e desenvolvimento institucional ao longo do tempo e em determinados espaços sociais escolhidos e possíveis. Também tem relação específica com o treinamento do membro já ingressado. Já os mecanismos coercitivos, executivos, deliberativos e com capacidade de sanção, tem relação com a estrutura interna e o desenvolvimento organizativo do partido.
Assim, o treinamento, desenvolvido por instância adequada e determinada com mandato coletivo da organização política, é, neste caso hipotético, um processo com etapas fixas, mas que se desenvolve de forma permanente. Seu objetivo é dotar de capacidades equivalentes as potencialidades dos membros plenos (com plenitude de direitos e deveres) de uma determinada instituição política com missão rigorosamente definida. O conceito chave deste treinamento, além dos conteúdos, é a equivalência entre os membros, buscando se atingir um patamar mínimo desejável pelo conjunto e com vias de crescimento de acordo com a necessidade e o planejamento estratégico da organização.
Vamos considerar que este partido hipotético aponte como necessário para realizar seu programa, dotar a instituição de quadros treinados e ambientados em segmentos sociais das classes oprimidas. Não se trata especificamente de fábrica ou favela, mas um conjunto de setores, segmentos e territórios a serem encarados como frentes de trabalho. Possibilidades organizativas são várias, seja por sujeito social excluído como mulheres, negros, indígenas ou juventude marginalizada; por categoria de trabalhadores assalariados ou por conta própria do campo ou da cidade (operários, biscateiros, catadores, bóias-fria); espaço geográfico excluído (associação de moradores de vila, periferia ou bairros operários); dentro do campo da Informação, da Comunicação e da Cultura; ou constituindo movimentos mais orgânicos e dotados de estrutura própria (como o movimento sem-terra, sem-teto, de trabalhadores desocupados). Enfim, nesta série não cogitamos a hipótese de apontar um setor prioritário frente ao conjunto para ser trabalhado na intenção de organizá-lo. Considerando estes serem o tipo de setores para co-organizar, via inserção social, a ambientação dos militantes com responsabilidades (quadros) passa a ser o tema central.
Antes já consideramos que o treinamento político específico se dá na interna da organização e ao longo do tempo, e a ambientação com o meio social que se quer trabalhar é o tema central. Então, o determinante para o trabalho de partido passa a ser a gravitação em meios populares, e fundamentalmente, através da ambientação de seus quadros. Basta fazermos um exercício de hipótese mínima para chegarmos à seguinte premissa. Quem tem a melhor inserção em um determinado meio social são aqueles indivíduos cujas trajetórias, origens familiares, gostos, domínio dos códigos culturais, penetração no tecido social e pertencimento geracional são oriundos neste mesmo espaço.
Ou seja, está à frente na pugna pela inserção quem tem o habitus de classe já incorporado, como ponto de partida mínimo. Isto é o inverso do capital cultural e das redes de conhecimento para o ingresso nas elites existentes e que são pré-requisitos para mobilidade social e alguma forma de arrivismo político. Voltando ao tema da inserção social tendo as classes oprimidas como protagonistas, a entrada de pessoal já ambientado nos setores escolhidos para o partido atuar, poupa anos de treinamento (justo de ambientação) e de carga de informação necessários para neste espaço se inserir.
Cabe aqui outra ressalva. Absolutamente não estamos afirmando de forma estrutural-determinista que indivíduos de setores excluídos, caso tenham o treinamento e a incorporação, não possam ter mobilidade social. O que sim afirmamos é que a regra vale tanto para cima (mobilidade de incorporação nas elites) como para baixo (inserção de indivíduos com origem e habitus de classe média em setores populares). Fatores de motivação política e oportunidade pela via institucional (ex. bolsas de estudos, para cima; e o contraponto, trabalhos de extensão universitária ou através de pastorais sociais, para baixo) podem alterar de forma individualizada esta norma, mas geralmente exemplificando a própria regra.
A capacidade de interpretação destas relações sociais e de informação empírica cabe a própria organização gerar as ferramentas necessárias, via treinamento específico, e com aplicação interpretativa por seus quadros. Assim afirmamos que o habitus (em sentido amplo, de classe e povo) é uma característica fundamental para este tipo de instituição política se desenvolver através de seus militantes nestes meios inseridos.
Como o habitus é algo que se adquire ao longo do tempo, via trajetória, o tema essencial então é o esforço concentrado para o recrutamento diretamente nestes mesmos setores excluídos onde se quer organizar. O treinamento político passa a ser tarefa da organização, agregando valor e orientação política normativa aos usos, códigos, costumes e preferências já existentes e que são trazidos via militantes destes meios socais. A integralização de habitus, ferramentas organizativas e interpretativas, somadas com um conjunto de valores do tecido social-produtivo integrado as instituições sociais de um mesmo território ou fração de classe, somada a produção de bens culturais e identitários que façam a fusão de trajetórias, ancestralidades e interesses é algo próprio e necessário para uma instituição política integrativa e de tempo integral.
Vale aqui outra ressalva. Esta não é, de forma alguma, a afirmação teórica da necessidade de profissionalização da militância. Até porque trabalhamos a modelagem de associações políticas voluntárias, portanto não de profissionalização proibida, mas secundária e controlada. A mesma ressalva vale para o reforço do caráter integrativo, como característica fundamental deste tipo de instituição.
A conclusão advinda do parágrafo acima é que a politização da vida social e cultural, agregando sentido coletivo e idéia de destino comum (a partir do pertencimento geracional e familiar) para um conjunto de militantes sociais, militantes políticos, quadros políticos e seus ambientes de gravitação é uma característica necessária para este modelo de organização política. Diminuindo a distância entre a vida privada e a coletiva, dando idéia de pertencimento e destino coletivo através do trabalho político e social, o habitus e o esforço integrativo (instituição, com coesão política através da afirmação de valores, normas de conduta, além do programa partidário e dos interesses de classe) são tão determinantes para uma possibilidade de sucesso político como o são os temas de conjuntura e especificamente políticos (como campanhas, discurso, formas organizativas e de níveis de conflito pela defesa e avanço de direitos).
Isto aponta para outra característica, necessário como pressuposto teórico. O recrutamento, condicionado por habitus e vida política integrativa em tempo integral (para seus quadros, parcial para sua órbita), aponta para o modo endógeno. Instituições de tipo integrativo, com condicionantes de força (ex. o Exército Brasileiro) e ambiente externo adverso (como este partido hipotético, às voltas sempre com deserções, saídas individualistas, desemprego de seus membros e possibilidade repressiva) deveriam, nesta hipótese, ter um recrutamento (majoritário, não-absoluto) de tipo exógeno, mas fortalecido, através da inserção social, também com laços de família ou amizade.
Este debate entraria aqui em temas mais próprios da organização, como lealdade, motivação e compreensão de objetivos coletivos. Mantendo a fidelidade com a discussão de teoria política específica, afirmamos que este tipo de condicionante é um inibidor, constrangendo elementos com motivações individuais vinculadas a alguma possibilidade de recompensa privada material, de tipo free rider (ver Olson, 1999, caps. 2 e 3). Em termos de custos sociais, as sanções e condenações de seus pares, podem fazer com que um indivíduo (e por tabela seu núcleo familiar e aqueles de seu grupo de relações diretas) calcule que a motivação material não é compensadora o bastante para romper uma série de lealdades adquiridas e reforçadas ao longo do tempo.
No sentido de conclusão:
Afirmamos que este tipo de treinamento é fruto de pensamento estratégico e vontade política, portanto, rigor conceitual e motivação normativa. Nesta instituição política é reforçada a necessidade de aumento da capacidade de análise, ao identificar o jogo real (regras formais e informais, dentro de parâmetros legais e ilegais) e a arena prioritária onde este partido se lança. As identidades geram a coesão interna necessária, o que em tese, diminui os custos de coerção. E o quesito identidade é reforçado não apenas na origem, mas a identidade de povo (ancestralidade e pertencimento a um território) e de classe (compreendendo classe também como antagonismo).
Bibliografia empregada:
ARCHINOV, Piotr. História do movimento Macknovista: a insurreição dos camponeses da Ucrânia. Lisboa, Cadernos Peninsulares, 1976.
BOURDIEU, Pierre. La Dinstinction. Paris, Minuit, 1979.
OLSON, Mancur. A lógica da ação coletiva. São Paulo, EdUSP, 1999.
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)