Introdução:  nesta postagem inauguramos o espaço para a defesa de posições de movimentos sociais e populares, territoriais e dos povos originários e quilombolas. Esperamos  com isso  abrir um espaço de debate e difusão amplo e radical, trazendo a urgência do direito ancestral para confrontar os modelos de capitalismo periférico ou transnacional,  ambos ancorados no genocídio de nossas culturas remanescentes e de resistência. 1500  não acabou e Zumbi tampouco morreu,  se eterniza nas formas de luta e resistência da segunda maior população afro-descendente do  planeta.

 

Instituto de Assessoria às Comunidades de Remanescentes de Quilombos – RS – IACOREQ/RS

 

Está prevista para o dia 11 de novembro de 2015 a constituição da CPI FUNAI/INCRA que será presidida pelo deputado federal Alceu Moreira (PMDB/RS). Tal CPI tem como objetivo investigar, entre outras coisas, denúncias a respeito de “laudos fraudulentos”. Entre os casos a serem investigados está a situação da comunidade quilombola de Morro Alto, localizada nos municípios de Maquiné e Osório, litoral norte do estado do Rio Grande do Sul. Neste sentido, a equipe responsável pelo laudo antropológico da citada comunidade (“Comunidade Negra de Morro Alto: Historicidade, Identidade e Territorialidade”) vem, por meio desta, expressar o seu REPÚDIO a tal iniciativa, cientes de que a mesma representa um degrau a mais na escalada genocida e etnocida das comunidades indígenas e quilombolas na sociedade brasileira. Portanto, o presente manifesto procura pontuar elementos que dizem respeito ao ofício do antropólogo quando em situações de perícia, evidenciando a falácia e a desonestidade compostas na noção de “LAUDO FRAUDULENTO”.

 

  1. A primeira noção a ser desconstruída diz respeito à FRAUDE. Em termos gerais, fraude implica numa ação de má-fé, na qual os seus autores usam de manipulação para obtenção de ganhos pessoais. No caso específico das comunidades alvo de tal CPI, a noção de fraude se apresenta na ideia de que os grupos estariam manipulando e falsificando deliberadamente suas identidades, assim como no pressuposto de que inventam territórios de forma completamente livre e sem critérios. O laudo e/ou relatório antropológico se apresentaria como o grande validador deste processo de falsificação irrestrita. Esta falsificação teria enquanto vocação a manipulação de identidade(s) com fins estritamente instrumentais: indígenas e quilombolas manipulando suas identidades de forma desonesta com o objetivo de um ganho direto de privilégios territoriais e acesso a recursos naturais (como se fossem visitantes em seus próprios territórios). Ora, tudo que a experiência imediata junto a estes grupos sociais demonstra é o ABSURDO da posição acima relatada. As situações concretas revelam realidades nas quais a iniciativa pelo reconhecimento pelas vias públicas transforma o cotidiano destas comunidades, tornando-o ainda mais penoso: o aumento da violência e de represálias nas arenas locais, a perda de postos de emprego (já que para muitos a empregabilidade se dá no entorno das comunidades) e a atenção redobrada com os limites de seus territórios ancestrais e dos recursos naturais neles inscritos são alguns exemplos. Igualmente, a morosidade nos processos de titulação acaba complicando ainda mais o quadro, já que as comunidades, uma vez reconhecidas, nem sempre tem a atenção de políticas que possibilitem a manutenção do processo em curso (e que contou com o laudo/relatório como uma de suas etapas). Portanto, ao invés de fraude ou falsificação de identidades (supostamente expressa nos laudos), que teria como foco ganhos instrumentais, encontramos processos de reconhecimento PROFUNDAMENTE ENRAIZADOS NOS HORIZONTES MORAIS destas coletividades. As lutas conduzidas diariamente na busca por justiça retiram qualquer possibilidade de fraude. A pergunta aqui deveria ser outra: o que permite que esses grupos continuem lutando, não obstante todos os processos de violência e alijamento histórico ao qual são submetidos? A resposta parece óbvia e não tem nada a ver com fraude ou ganhos instrumentais.

 

  1. A noção de NEUTRALIDADE também aparece no argumento equivocado que busca desqualificar o direito à auto-atribuição dos grupos étnicos acima referidos, assegurado por lei, bem como na suposição de um papel completamente distorcido do antropólogo no contexto de perícia. Há muito a noção de neutralidade foi tema discutido no âmbito das ciências humanas, de modo a considerá-la mais um argumento para ser desconstruído do que uma referência que possibilite a análise das realidades dos grupos pesquisados. O que de fato deve ser considerado em termos de referencial é o comprometimento ético do antropólogo, a partir do qual buscará contextualizar não somente o seu objeto, mas seu lugar no âmbito profissional. A necessária aproximação e o devido distanciamento estão fundamentados no âmbito da Antropologia desde as primeiras pesquisas etnográficas. A suposta neutralidade, na qual está fundamentada a argumentação da CPI FUNAI/INCRA, traz em si mesma a contradição quanto ao uso do juízo de valor por parte de quem questiona o critério de auto-atribuição dos grupos étnicos, ou seja, os não quilombolas e não indígenas, e a tentativa de definir os parâmetros quanto à identificação dos territórios étnicos. O desrespeito quanto ao papel do antropólogo em contexto de laudos demonstra a fragilidade da argumentação da CPI. A tentativa de desqualificação tanto dos povos indígenas e das comunidades étnicas como dos profissionais de Antropologia por parte do deputado federal Alceu Moreira aponta para a ausência de responsabilidade dos agentes políticos, sobretudo no que tange aos direitos dos povos e comunidades tradicionais, estabelecidos no Decreto 6.040 de 7 de fevereiro de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

 

A Comunidade Quilombola de Morro Alto recebeu sua certidão de Auto-Definição em 04 de junho de 2004. O processo de identificação e titulação de seu território ocorreu em 2001 por meio do Convênio nº 002/2001, firmado entre a Fundação Cultural Palmares/MinC e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, a partir de projeto apresentado pela Secretaria Estadual do Trabalho, Cidadania e Ação Social (STCAS), fruto da articulação do Conselho do Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra (CODENE) e do Movimento Negro do RS. Nesta ocasião, foi aprovado o referido projeto pela FCP/MinC, que repassou recursos para a STCAS  realizar o trabalho de identificação e titulação dos território de cinco Comunidades Quilombolas do RS: Morro Alto, Arvinha, Mormaça, São Miguel e Martimianos e Casca.

 

Foi então realizado o relatório técnico de identificação do território das cinco comunidades por meio da contratação de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS. No caso de Morro Alto, trata-se do relatório elaborado por equipe multidisciplinar vinculada ao Núcleo de Antropologia e Cidadania/ NACI, Departamento de Antropologia/UFRGS. A equipe técnica contou com cerca de 15 pesquisadores das áreas de antropologia, história, geografia e arqueologia, além do acompanhamento e contribuição do Ministério Público Federal/PGR-RS. Cabe ressaltar que a composição da equipe técnica considerou a experiência em pesquisa de campo e em coleta de dados etnográficos, indispensáveis ao longo dos quatro capítulos do relatório. Ressalta-se a necessidade de diálogo entre diferentes áreas de conhecimentos para a coleta e análise de dados acerca do vínculo mantido pela Comunidade Quilombola Morro Alto com o seu território, argumento central do relatório, além dos aspectos concernentes a ancestralidade, parentalidade, história da ocupação negra e sustentabilidade.  A pesquisa em Morro Alto foi realizada no período compreendido entre agosto de 2001 e outubro de 2002. O relatório antropológico foi publicado no ano de 2004 pela Editora da UFRGS, assim como os demais relatórios elaborados na mesma época.

 

A demanda pela titulação do território quilombola de Morro Alto partiu de sua representação política, a Associação Quilombola Rosa Osório Marques, motivada pela presença das obras de duplicação da BR-101 SC/RS no Trecho Torres-Osório, de responsabilidade do Departamento Nacional de Infra-Estrutura e Transporte-DNIT/MT, que atingiria seu território. A comunidade sofre com os processos de expropriação de seu território também em função da presença de pedreiras, usina de álcool e especulações imobiliárias. As cercas “andavam”, como muitos moradores testemunharam, a cada interferência ou conflito vivenciado pelos quilombolas quando dos processos de perda de suas terras.

 

O território da Comunidade de Morro Alto engloba as localidades denominadas: Morro Alto, Ribeirão, Prainha, Aguapés, Barranceira, Faxinal do Morro Alto e parte de Espraiado. A área total é de 4.564,4284 hectares, destinada às 456 famílias quilombolas. Sob responsabilidade do INCRA, a partir do Decreto 4887/2003, o relatório ainda não obteve a Portaria de Publicação no DOU. Acerca do licenciamento das obras de duplicação da BR-101, estas foram realizadas. Por intervenção do MPF/RS, em 2006, houve necessidade de elaboração de novo EIA/RIMA em função da manipulação, por parte do Instituto Militar de Engenharia, do texto anteriormente elaborado pelo antropólogo responsável. No ano de 2007, foi elaborado o Programa Básico de Apoio para a realização das medidas compensatórias e mitigatórias. Atualmente a Comunidade Quilombola de Morro Alto aguarda pela efetivação de tais medidas (em parte realizadas) e pelo processo de regularização fundiária, ainda paralisado.

 

Contato para maiores informações, Cristian Salaini – prof. Dr,  antropólogo

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