Escravos negros trabalhando, de Debret, 1824.  - Foto: www.unicamp.br
Escravos negros trabalhando, de Debret, 1824.
Foto: www.unicamp.br

O artigo desenvolve os fundamentos preliminares para a compreensão do processo escravista em Alegrete no século XIX, através da análise de livros de batismos, relatos de viajantes, posturas municipais e livros de óbitos, mostrando que o escravo negro foi atuante e com presença significativa na cidade.

Por Márcio Jesus Ferreira Sonego.

Alegrete, 07 de maio de 2009.

O presente artigo pretende abordar algumas questões relevantes sobre a presença de escravos nos primórdios da povoação do Rio Grande do Sul. Para essa abordagem será utilizado o texto de Fábio Kühn, Gente da Fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa – século XVIII, fazendo uma análise e comparação com outros trabalhos desenvolvidos sobre a participação do escravo na formação do território sulino e de alguns documentos referente à escravidão em Alegrete, como livros de batismos, relatos de viajantes, posturas municipais e livros de óbitos, mostrando que o escravo foi atuante e com presença significativa na cidade.

Para começar, é importante salientar que o escravo inexistiu durante décadas para a historiografia gaúcha. Foi quase um consenso entre historiadores sulinos a pouca importância que teria tido o escravo na formação do Rio Grande do Sul. Para essa historiografia o Sul teria sido produto do homem livre, sendo o aventureiro vicentino, o colono açoriano, o castelhano transbandeado e o índio missioneiro (MAESTRI, 1979). Os escravos foram poucos, domésticos, quase inexistentes. Na verdade, quando se falava em escravidão, era para ressaltar que se no Rio Grande do Sul, houve escravismo, ele foi paternal e benigno.
O motivo dessa exclusão do escravo no Rio Grande do Sul pode ser explicado na seguinte afirmação de MAESTRI, “poucos simpáticos seriam nossos heróis se aparecessem em senhores-de-escravos, vivendo do trabalho alheio, castigando, comerciando com o homem escravizado” (1979, p. 30). Outro motivo que acontece é a própria raridade das fontes históricas referente ao escravismo, e quando existentes por tratar-se de escravos, possivelmente são menosprezadas e perdidas.

No entanto, no momento que começam a ser analisados alguns documentos referente a escravidão, o escravo aparece atuante e com presença significativa. Assim o trabalho de Fábio Kühn é inovador nesse aspecto, pois através de documentação resgata não apenas a presença, mas também a importância do escravo no Rio Grande do Sul. Em seu trabalho faz uma caracterização da sociedade sul-rio-grandense do século XVIII, particularmente Viamão, uma das regiões de povoamento inicial do atual território do Rio Grande do Sul, na qual observou uma sociedade típica do Antigo Regime português nos trópicos, baseada na existência de uma nítida hierarquia social e marcada pela presença expressiva da escravidão. Dessa forma, mostra que no Rio Grande do Sul, não existiu uma sociedade paternal e baseada somente no trabalho livre. Segundo KÜHN (2004, p. 47): “Longe do cenário que enxerga o passado colonial como terra de gaúcho, vivendo envoltos em lides guerreiras, o que se descortina é uma sociedade extremamente excludente, onde uma pequena minoria de famílias, detém uma grande parte da riqueza existente, fosse na forma de terras, gados ou homens.”

Através dos documentos avaliou a importância da população escrava na formação da sociedade colonial sul-rio-grandense, evidenciando a expressiva presença de cativos de origem africana desde o seu período formativo, sendo uma sociedade totalmente dependente da mão-de-obra escrava. Os dados da população de Viamão em 1751 mostram elevado número de escravos em um período tão recuado da colonização lusa, na qual mais de 42% da população era composta por cativos de origem africana. No total, mais de 45% da população era cativa, um percentual muito elevado, semelhante ao encontrado nas zonas mineradoras ou de plantation e não muito adequado a uma região voltada ao mercado interno. A historiografia sul-rio-grandense enfatizou por muito tempo que o escravo não foi fundamental na economia gaúcha e que as relações entre senhores e escravos eram cordiais, diferentemente do restante do país. Entretanto os documentos mostram que foi significativa a presença da população escrava no Rio Grande do Sul, contribuindo assim para desfazer essa visão preconceituosa e idealizada da História que predominou por um longo período. Isso recupera e mostra a importância que teve o escravo na formação econômica, social e cultural no Rio Grande do Sul.

O Escravo em Alegrete

O escravo durante muito tempo inexistiu na historiografia da cidade. Foi quase um consenso entre historiadores locais a pouca importância que teria tido o escravo na formação do município. Os trabalhos históricos quando tratam do assunto, se referem superficialmente ao trabalho escravo, havendo uma grande resistência da maioria dos historiadores de escrever a História da localidade inserindo a temática da escravidão. No entanto, no momento que começam a ser analisados os poucos documentos que restaram na cidade referente à escravidão, o escravo aparece atuante e com presença significativa. Muitas vezes essas fontes mostram a crueldade e a violência como eram tratados, bem diferente do que diz a historiografia tradicional sobre o escravismo paternal e benigno existente no sul.

A presença dos escravos em Alegrete recua aos primórdios da povoação, assim, no 29º registro de batismo de 30-12-1820, L. 01; F 03. V se encontra a primeira filha de escrava batizada na cidade: “Lucrecia (escrava). Aos trinta de dezembro de mil oitocentos e vinte, nesta capela Curada de Alegrete batizei e puz os santos óleos a Lucrecia filha de Francisca e pai incógnito, escrava de Joaquim Pedroso da Costa. Foram padrinhos Cristão Gonçalves solteiro e Maria Caetana de Melo solteira, todos moradores e fregueses desta de que para constar fiz este assento que asigno.O Cura Manoel Fernandes de Almeida.”
Ao longo de sua História, Alegrete contou com mais de 3.000 escravos, mostrando dessa forma que foi atuante a presença do negro na cidade durante o século XIX. Conforme BAKOS (1982, p. 22-23) a população escrava em Alegrete no ano de 1959 era de 2.525; 1884 de 1.200; 1885 sendo 30 e em 1887 não constando escravos.

Em passagem pela cidade no período de 1833 a 1834, o viajante ISABELLE (1983, p. 24) fez a seguinte observação: “A vinte léguas, nos arredores do sul de Guairaca se acha Alegrete, pequena cidade na fronteira da Província com A Banda Oriental; está segundo as informações que obtive perto de 30 10 de latitude (salvo erro), sobre a margem direita do Guarapuitan, pequeno arroio que os guaranis chamam Ybirita e que vai lançar-se ao norte do Ybicui. Esta cidadezinha, toda nova, fica assentada em colinas rochosas, produzindo pastagens extremamente alimentícias. Criam-se muitos animais e mulas bastante famosas. O comércio é ativo. A algumas léguas para o sul há morros ricos em metais; um deles contém uma mina de ouro de fácil exploração.”

Pela afirmação de ISABELLE, verifica-se que a cidade tinha a economia baseada no meio rural, no entanto o comércio era significativo, não sendo assim possível separar estritamente o universo rural do urbano, na primeira metade do século XIX em Alegrete. Isso também pode ser observado alguns anos depois no relato do Cônego João Pedro Gay, Reverendo Pároco de Alegrete, em 02 de abril de 1849 (apud TRINDADE: 1885, p. 90): “A povoação atual da Vila de Alegrete podia avaliar em 1.500 habitantes, a da campanha que lhe pertence é superior e excede talvez a 4.000 habitantes. Na Vila a maior parte dos moradores emprega-se no comércio, que é muito considerável.”

Tudo mostra que a cidade e seu entorno rural estavam ligados, em mesma citação o Cônego João Pedro Gay, faz um breve comentário sobre os escravos, afirmando que “os africanos são pouco numerosos e quase todos nos serviços internos das casas, exceto muito poucas quitandeiras, que andam vendendo frutas, doces e pão”. Através disso se percebe que os escravos poderiam ter ocupações urbanas e residindo, no entanto nas estâncias, havendo certa mobilidade, como mostram as Posturas Municipais de Alegrete do ano de 1850: Art. 133. “É também proibido na taverna ou casa de negócio fixo ou ambulante, comprar a escravo, carne, cera, graxa, toucinho, couro, crina e todo e qualquer produto de estância, ou de lavoura sem que o escravo traga a autorização do senhor ou de pessoa de cujo poder estiver, para vender. O contraventor além de ser obrigado de restituirão senhor ou pessoa de cujo poder estiver, o que houver comprado, será multado em 30$ réis, e sofrerá oito dias de prisão, que na reincidência será elevada a trinta”.

Essas posturas municipais dão uma boa compreensão de como era a escravidão na cidade, sendo firme e rigorosa com os escravos. A violência contra os escravos em Alegrete pode ser verificada nos livros de óbitos, no seguinte registro de 18 de dezembro de 1848 – livro 01, folha 94 v, onde o escravo Valentim, depois de ter sido confinado, foi enforcado em plena praça da Vila: “A dezoito de dezembro de mil oitocentos e quarenta e oito na praça desta villa de Alegrete depois de ter sido assistido por mim e ter sido confinado foi enforcado o réu Valentim de idade de 20 anos e escravo do coronel Olivério José Hortiz. E para contar fiz este assento que assinei. Vigário João Pedro Gay.”

Dessa forma, mesmo o escravo sendo excluído por um longo tempo da História local, esses documentos mostram que o negro existiu em Alegrete, onde com seu trabalho participaram da formação social, cultural e econômica da cidade. Foram tão importantes que seus costumes estão presentes no nosso dia-a-dia, como na culinária, música, religião e linguagem.

Referências Bibliográficas
Fontes Primárias
Livro de Registro de Batismos de Escravos em Alegrete- 29º Batismo de 30-12-1820, L.01; F 03. v.
Livro de Registro de Óbitos de Escravos em Alegrete- 829º óbito- 18 de dezembro de 1848, Livro 01, Folha 94 v.
Posturas da Câmara Municipal de Alegrete, com data de 09 de junho de 1848, aprovada pela Assembléia na Lei 192 de 22 de novembro de 1850.

Livros
BAKOS, Margaret M. RS: Escravismo e Abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
ISABELLE, Arsene. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1833-1834; Tradução e Notas de Dante de Laytano. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983.
KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa – século XVIII. In: GRIJÓ, L.A; KÜHN, F; GUAZZELLI, C.A.B; NEUMANN, E.S; OSÓRIO,H. Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
MAESTRI FILHO, Mário José. O Escravo Africano no Rio Grande do Sul. In: DACANAL, J.H. RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979.
TRINDADE, Miguel Jacques. Alegrete do Século XVII ao Século XX. Volume I. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985.

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